Trilogia Familiar: meu pai era contra o tema de gênero na escola, por Paulo Gaiger*
- Alexandre Costa

- 26 de jul. de 2024
- 3 min de leitura

Até os meus doze anos, eu admirava meu pai. No velório dele, na semana passada, já
com meus vinte anos, meu sentimento era outro. Eu vivi um dilema: chorar a sua
morte ou me sentir aliviada e livre. Minha mãe e minhas duas irmãs contaram que
experienciaram sentimento parecido ao meu. Pareço uma filha ingrata ao escrever
isso, não é? Mas tento explicar: até o início de minha adolescência eu achava natural
como as coisas se davam em casa. Minha mãe, doméstica, preparando as refeições,
limpando os quartos, cozinha, banheiro, escritório e sala, nos auxiliando com as
tarefas escolares, se arrumando ao anoitecer para receber meu pai, sendo ofendida.
Saia para ir ao supermercado, às vezes à academia ou ao salão de beleza fazer as
unhas e dar uma ajeitada nos cabelos. Minha mãe sempre foi muito bonita. Não
tínhamos muita intimidade, falo desse lance de conversar sobre a vida mesma, de
nossas angústias, de ouvir as angústias dela... Assim era porque em nossa casa havia
uma hierarquia que proibia a troca de ideias e de vivências. Meu pai no topo, dando as
ordens, minha mãe e nós três quase debaixo do tapete, sendo pisoteadas a cada
pergunta que tentávamos fazer. Tínhamos que engolir o que ele determinava. Nos
meus primeiros doze anos, então, achava isso super normal. Na escola, porém, eu
tinha amigas que vinham de outras realidades, muitas delas com pais divorciados, de
famílias bem diferentes da minha. A Fernanda tinha duas mães. Tinha colegas gays,
amigas lésbicas e conhecia um menino da outra turma que era mais mulher do que
homem. Quando entrei no ensino médio, os professores de biologia e de filosofia
introduziram na minha vida a questão de gênero, dos papéis culturais femininos e
masculinos, e de um mundo humano que estava ao meu lado, mas que eu não via: eu
achava que tinha de me casar, ter filhos e cuidar de uma casa igual à minha mãe. Minha irmã, Clara, quase dois anos mais nova do que eu, não se dava muito com meninos, achava eles um saco, me dizia. Ela tinha sentimentos que não conseguia
compreender, ficava irritada por qualquer coisinha. Meu pai falava que ela precisava
de um namorado que logo se tornaria noivo e depois marido e que estas frescuras
iriam cessar depois que tivesse filhos, uma ocupação. Começamos a brigar quando
me dei por gente e superei minha condição de filha. Clara, muito mais. Minha mãe,
quase sempre calada, começou a tomar partido e trouxe à tona o tempo em que lia
muito e se sentia livre. Disse certo dia que o maior erro de sua vida fora deixar de ser
mulher para se tornar esposa de um machista, chantagista e farsante. Levou uma
bofetada. Nós intervimos e só não rolou uma batalha infernal porque meu pai saiu
porta afora berrando que éramos umas mulherzinhas comunistas, que precisávamos
de corretivo. Quando regressou, reuniu as filhas e nos aplicou uma surra daquelas.
Clara, indignada, fugiu para a casa de uma amiga. Só voltou duas semanas depois
porque a mãe suplicou. Na mesa, o pai pediu desculpas esfarrapadas e afirmou que a
culpa era nossa porque nossa cabeça estava tomada desta ideologia de gênero que a
escola ensinava. Respondi que ele é que representava a pior das ideologias, a de
mulheres submissas e homens cegos e boçais como ele; falei que meus amigos gays,
trans e lésbicas tinham uma dignidade que ele nem sonhava porque era obcecado
pela ignorância. Quando entrei na faculdade, minha mãe me abraçou, mas ele
pareceu contrariado. E quando ficou sabendo de que Clara namorava uma mulher,
jurou que ia mandá-la para um tratamento psiquiátrico e deserdá-la. Mas foi quando
nossa irmã menor, em seus catorze anos, tatuou um poema nas costas, começou a
ficar com um colega negro e confessou que ficava horas a fio na biblioteca da escola,
que nosso pai, enfurecido, foi correndo para lá, aonde nunca chegou graças a um
AVC. Meu pai talvez quisesse, ao invés de três filhas fortes, três varões iguais a ele,
violentos, covardes e estúpidos. Machistas e muito medíocres. (*) Conto publicado no livro Metáfora das Flores
Trilogia Familiar – Quando deixei de existir: https://www.esquinademocratica.com.br/post/trilogia-familiar-quando-deixei-de-existir-por-paulo-gaiger
Trilogia Familiar – Quando matei minha mulher: https://www.esquinademocratica.com.br/post/trilogia-familiar-quando-matei-minha-mulher-por-paulo-gaiger








