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Trilogia Familiar: meu pai era contra o tema de gênero na escola, por Paulo Gaiger*

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Até os meus doze anos, eu admirava meu pai. No velório dele, na semana passada, já

com meus vinte anos, meu sentimento era outro. Eu vivi um dilema: chorar a sua

morte ou me sentir aliviada e livre. Minha mãe e minhas duas irmãs contaram que

experienciaram sentimento parecido ao meu. Pareço uma filha ingrata ao escrever

isso, não é? Mas tento explicar: até o início de minha adolescência eu achava natural

como as coisas se davam em casa. Minha mãe, doméstica, preparando as refeições,

limpando os quartos, cozinha, banheiro, escritório e sala, nos auxiliando com as

tarefas escolares, se arrumando ao anoitecer para receber meu pai, sendo ofendida.

Saia para ir ao supermercado, às vezes à academia ou ao salão de beleza fazer as

unhas e dar uma ajeitada nos cabelos. Minha mãe sempre foi muito bonita. Não

tínhamos muita intimidade, falo desse lance de conversar sobre a vida mesma, de

nossas angústias, de ouvir as angústias dela... Assim era porque em nossa casa havia

uma hierarquia que proibia a troca de ideias e de vivências. Meu pai no topo, dando as

ordens, minha mãe e nós três quase debaixo do tapete, sendo pisoteadas a cada

pergunta que tentávamos fazer. Tínhamos que engolir o que ele determinava. Nos

meus primeiros doze anos, então, achava isso super normal. Na escola, porém, eu

tinha amigas que vinham de outras realidades, muitas delas com pais divorciados, de

famílias bem diferentes da minha. A Fernanda tinha duas mães. Tinha colegas gays,

amigas lésbicas e conhecia um menino da outra turma que era mais mulher do que

homem. Quando entrei no ensino médio, os professores de biologia e de filosofia

introduziram na minha vida a questão de gênero, dos papéis culturais femininos e

masculinos, e de um mundo humano que estava ao meu lado, mas que eu não via: eu

achava que tinha de me casar, ter filhos e cuidar de uma casa igual à minha mãe. Minha irmã, Clara, quase dois anos mais nova do que eu, não se dava muito com meninos, achava eles um saco, me dizia. Ela tinha sentimentos que não conseguia

compreender, ficava irritada por qualquer coisinha. Meu pai falava que ela precisava

de um namorado que logo se tornaria noivo e depois marido e que estas frescuras

iriam cessar depois que tivesse filhos, uma ocupação. Começamos a brigar quando

me dei por gente e superei minha condição de filha. Clara, muito mais. Minha mãe,

quase sempre calada, começou a tomar partido e trouxe à tona o tempo em que lia

muito e se sentia livre. Disse certo dia que o maior erro de sua vida fora deixar de ser

mulher para se tornar esposa de um machista, chantagista e farsante. Levou uma

bofetada. Nós intervimos e só não rolou uma batalha infernal porque meu pai saiu

porta afora berrando que éramos umas mulherzinhas comunistas, que precisávamos

de corretivo. Quando regressou, reuniu as filhas e nos aplicou uma surra daquelas.

Clara, indignada, fugiu para a casa de uma amiga. Só voltou duas semanas depois

porque a mãe suplicou. Na mesa, o pai pediu desculpas esfarrapadas e afirmou que a

culpa era nossa porque nossa cabeça estava tomada desta ideologia de gênero que a

escola ensinava. Respondi que ele é que representava a pior das ideologias, a de

mulheres submissas e homens cegos e boçais como ele; falei que meus amigos gays,

trans e lésbicas tinham uma dignidade que ele nem sonhava porque era obcecado

pela ignorância. Quando entrei na faculdade, minha mãe me abraçou, mas ele

pareceu contrariado. E quando ficou sabendo de que Clara namorava uma mulher,

jurou que ia mandá-la para um tratamento psiquiátrico e deserdá-la. Mas foi quando

nossa irmã menor, em seus catorze anos, tatuou um poema nas costas, começou a

ficar com um colega negro e confessou que ficava horas a fio na biblioteca da escola,

que nosso pai, enfurecido, foi correndo para lá, aonde nunca chegou graças a um

AVC. Meu pai talvez quisesse, ao invés de três filhas fortes, três varões iguais a ele,

violentos, covardes e estúpidos. Machistas e muito medíocres. (*) Conto publicado no livro Metáfora das Flores


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