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Trilogia Familiar: Quando matei minha mulher, por Paulo Gaiger*

Foto do escritor: Alexandre CostaAlexandre Costa

O que acontece comigo é assombroso: a confirmação de que no hiato entre a última respiração e o rigor mortis, a vida inteirinha percorre a memória para revelar nossa verdadeira face. Em meu caso, é mais extraordinário ainda porque já estou dentro do caixão sendo velado. Não respiro e meu coração está apodrecido há muitos anos. Amigos do futebol, colegas de trabalho, meus pais, estão aqui. Embora mortinho da silva, percebo, através das pálpebras fechadas, minha esposa e minhas filhas recebendo os que vieram se despedir. As conheço bem e sei que fingem tristeza. É como se livrassem de um pesadelo. De mim, obviamente! Já prevejo, depois do ritual, comemorando com espumantes e dançando de alegria. Conheci minha esposa na escola quando éramos adolescentes. Nos intervalos ou quando um professor faltava, eu ficava mexendo no celular, falando qualquer coisa com meus colegas ou batendo uma bolinha na quadra. Entre as meninas da sala, ela era a mais estranha. Vestia umas roupas sem noção, tinha uma tatuagem com versos que eu não entendia, usava piercing e quase sempre ia para a biblioteca. Contudo, era extrovertida e às vezes bancava discussões sobre feminismo, direitos humanos e sei lá o que mais. Sobretudo, era linda. Seu jeito diferente me desafiou e um dia, depois de uma aposta com meus colegas, me convidei para ir à biblioteca com ela e ela, sem rodeios, topou. Olhei para meus colegas e dei um breve sorriso a la Don Juan, caçoando deles. Nas primeiras vezes em que fomos juntos à biblioteca, ouvi o que ela tinha a dizer sobre literatura e poesia. Então soube que ela havia se apaixonado por uma poetisa portuguesa, Florbela Espanca, e tatuou parte de um poema em suas costas. Sem nenhum constrangimento, apenas cuidando a funcionária da biblioteca, ela tirou a blusa e mostrou o poema e pediu para que eu o lesse. Li, muito nervoso. Ela disse que minha voz era linda e pegou um livro de poesia: “leia para mim”. Ao longo de semanas, assim foram meus recreios e períodos sem professor. Até que um dia, demos o primeiro beijo. Um beijo gostoso que foi a ponte para uma paixão eternamente infantil. Fisguei a guria, anunciei aos meus colegas. E fui cansando do ritual da biblioteca. Na verdade, nunca gostei de leitura. Fiz toda esta ginástica porque queria conquistá-la, queria um troféu. Pouco a pouco, fui propondo outras coisas e quando ela insistia, inventava qualquer mal-estar para não irmos às leituras. Ela foi cedendo porque acreditava em mim. Me acompanhava no futebol e, por ciúmes e possessão, metodicamente afastei seus amigos e os livros de seu horizonte. Os pais dela me apoiaram. Por amor, eu dizia, te quero só para mim. Às vezes ela ficava furiosa. Então, eu pegava um livro e lia um trecho, entrecortado de juras de amor e desespero ensaiado. Quando isso não funcionava, largava a mão. A obriguei a tirar o piercing e a cobrir a tatuagem. Não sei por que agia assim. Meu pai nunca amou minha mãe, mas a suportava em nome da família. Minha mãe se sujeitou ao pesadelo, em nome da família. Agora no caixão, reconheço que nunca a amei, nem a respeitei. Queria a posse de um objeto que eu pudesse mostrar: essa é minha esposa. Quando nos casamos a coloquei dentro de casa. Aqui, não cobrimos as mulheres com hijab, mas as confinamos no espaço doméstico, o que dá na mesma. A convenci a largar a faculdade porque eu já trabalhava no escritório do meu pai. Outra maneira de prender a esposa é enchendo a casa de filhos. Tivemos três meninas que ocuparam o tempo todo dela. Acabei buscando garotas de programa porque entendia que não podia fazer sexo e extravasar meus fetiches com a mãe de minhas filhas. Quando as meninas cresceram, começaram a se dar conta do pai que tinham. O pai machão que, em doses diárias de covardia, chantagens e mentiras, foi aniquilando a mulher que um dia conheceu indo para a biblioteca. Meu coração e meus valores já eram podres.

 

(*) Conto publicado no livro Metáfora das Flores


 

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