Trilogia Familiar - Quando deixei de existir, por Paulo Gaiger*
- Alexandre Costa
- 12 de jul. de 2024
- 3 min de leitura

Eu tinha catorze anos, recém havia ingressado no ensino médio. Vestia roupas que meus pais diziam ser esquisitas, ouvia minha mãe suspirar desconsolada. Meu pai comentava de lado e com ironia: vais assim, com essa coisa absurda, não preferes vestir uma roupa normal? Usava piercing e tatuei uns versos de uma poesia da Florbela Espanca que eu adorava: “Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... Amar! Amar! E não amar ninguém!”. A biblioteca da escola não era lá uma grande biblioteca, mas num cantinho perdido de uma estante, tinha uma coleção de livros de poesia, de Vinícius de Moraes, Fernando Pessoa, Cecília Meireles, Cora Coralina, Leminski, Mário Quintana, Elisa Lucinda... nomes que eu nunca tinha ouvido falar. Quando um professor faltava, eu corria para o meu canto e lia encantada. Um dia dei com a Florbela e me apaixonei. Outro dia, um menino da minha classe foi comigo. Ele também pareceu encantado com as poesias e decidiu, por toda uma vida inteira que preenchia cada período sem aula, lê-las para mim em cada encontro às escondidas na biblioteca. Eu aceitei e me apaixonei. Mudei o ritmo de meu coração, já não eram as poesias que me mobilizavam, mas a sua voz e, a cada final de leitura, o beijo molhado. Depois de alguns meses vivendo uma rotina que parecia muito melhor e mais perfeita que o mundo dos filmes bobos para adolescentes, os beijos molhados se multiplicaram e as leituras de poesia foram caindo no esquecimento. Ele me impelia a fazer outras coisas, dizia que o excesso de livros deixava a gente fora da casinha, que era preciso viver, aproveitar os momentos, isto é, nossos arretos e beijos intermináveis. Eu vivia uma avalanche diária de promessas de amor “para sempre”, na mesma medida em que seus ciúmes erguiam muros entre mim e meus amigos, entre os livros e eu. Não queria que eu saísse com mais ninguém, pediu a senha de meu celular e verificava as mensagens que eu recebia ou enviava. “É porque te amo”, sussurrava ao meu ouvido. Quando meus pais viajavam, íamos para o meu quarto e lá transávamos como coelhos. Ele gostava de futebol e eu assistia com ele quase todas as partidas. Quando eu enchia o saco desta vida meio sem graça, eu só para ele, ele retomava declarações, às vezes até relia algum poema que eu guardava em casa. Começou a censurar minhas roupas. Senti que meu piercing oxidava e minha tatuagem desbotava. Mas uma vez, ele fez uma jura que, agora sei, deve ter sido a mesma de meu pai para a minha mãe: “quero ser o pai dos teus filhos”. Eu não queria ser mãe. Tempos depois, nos casamos. Nunca quis me casar na igreja, mas meus avós suplicaram. Casei-me na igreja a pedido deles, me justifiquei. Não terminei a faculdade, mas cuidei de três meninas, nem todas planejadas. Às vezes, conseguia encontrar uma amiga, mas a minha rotina era a casa, o salão, a ginástica e o sexo quando ele queria. Ele ia para o futebol, enchia a cara de cerveja, comia garotas de programa e ostentava o título de homem e marido, defensor da família. Cansada e preparando o almoço, ouvi na rádio a canção A história de Lilly Braun, do Chico, cantada pela Maria Gadú. Fiquei arrepiada e chorei. Chorei muito repassando minha vida e querendo saber quando eu havia deixado de existir, quando abandonei a mulher para me tornar esposa e vassala de um homem minúsculo. No dia em que um AVC o mandou para o ultramundo, mal consegui fingir consternação. Eu tinha raiva de mim mesma, de como eu havia traído a Florbela e me deixado levar pela correnteza do lugar comum, um destino para as mulheres, desenhado pelos homens. Em nenhum momento alguém me alertou do absurdo. Recoloquei o piercing, descobri a tatuagem e me sentei com minhas filhas: “está tudo errado. Vamos fazer diferente! Sejam mulheres, sempre! Livres e independentes!”
(*) Conto publicado no livro Metáfora das Flores
