Diante dos últimos acontecimentos em nosso Brasil, ainda atordoada com os brutais assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips, fiquei chocada com mais um abuso de poder em nossa terra sem lei, nem Deus. Desta vez a vítima era uma menina que, acompanhada da sua mãe, com boletim de ocorrência, laudo criminal e exame de corpo delito por estupro, teve a interrupção de gravidez permitida pela lei, sumariamente negada. Primeiramente no hospital e, em seguida, por uma juíza sádica e inescrupulosa, que usando de argumentos absurdos, mal disfarçavam o seu falso moralismo e covardia em prol da “vida”. Manipulou e intimidou a vítima e sua mãe, negando auxílio para que a menina tivesse a sua infância de volta, prematura e brutalmente arrancada por um macho abusador. Ainda que atrasada e obsoleta, a lei brasileira, permitiria à vítima abortar. O caso gerou comoção nacional e mostra que, o tabu do aborto, ainda é imenso e merece ser discutido com profundidade, sobretudo pelas mulheres. Afinal, o corpo é nosso e apenas nós podemos decidir pelo próprio corpo. Neste caso a separação da religião de qualquer doutrinação de cunho moralista, feito por homens e mulheres hipócritas ou mal esclarecidos a respeito da gravidez indesejada na infância e juventude, é fundamental para que a sociedade decida, com civilidade, serenidade e sem preconceito, sobre o que é melhor para nós, mulheres. Os altos índices de mortalidade sofrido por meninas e jovens, vítimas de abortos praticados em clínicas clandestinas é, no mínimo, um caso de saúde pública brasileira. E falo por experiência própria, pois, mesmo sendo uma moça de classe média e, supostamente esclarecida, usando tabelinha, pílula, diafragma e “camisinha”, eu engravidei indesejadamente a primeira vez com 20 anos. Evidente que, assim que minha menstruação falhou e constatei o princípio de gestação, tive o privilégio de fazer o aborto numa clínica clandestina, porém de alto padrão. Evidente que se não fosse pelo dinheiro da minha família, que precisou desembolsar uma nota fabulosa, eu ficaria a mercê de um “açougueiro”. Codinome vulgarmente dado a médicos sem qualquer comprovante ou certificado legal de cirurgião ginecologista-obstetra, que realizam procedimentos em locais, muitas vezes, inadequados, carentes de equipamento, material e, sem anestesia. Tanto um local quanto outro, estão sujeitos a serem descobertos, seus consultórios invadidos pela polícia e os médicos terem os seus diplomas cassados. Novamente, falo por experiência própria pois, aos 23, engravidei novamente. Quando desconfiei, fui imediatamente fazer o exame. Voltei para casa com o coração aos pedaços e o resultado em mãos. Quando fui verificar o diafragma, percebi que estava com uma fissura na lateral. Com remorso e culpa de pedir socorro, mais uma vez aos meus pais, me entreguei, sem nem pensar duas vezes, ao médico da vez em Porto Alegre. Na Rua Voluntários da Pátria, descobri com amigas, de amigas de amigas, um “bem bratinho” que praticava o aborto por sucção. Creio que ganhei o meu cartão amarelo, para seguir viva e de volta ao campo da vida no primeiro tempo, ali, naquele muquifo inesquecível, mas que me deixou livre de levar adiante uma gravidez indesejada numa fase da vida onde a faculdade e a carreira eram, sem dúvida, muito mais importantes para mim. Respeito a decisão de qualquer mulher de ter ou não filhos. Eu sempre quis tê-los, mas sabia que aquela não era a hora.
Conto isso porque tenho 59 anos e dois filhos maravilhosos, Valentina e Aramis, ao lado do amor da minha vida, parceiro na arte e na criação dos nossos tesouros. A gravidez não deveria ser obra apenas da força da natureza e do acaso, mas igualmente da responsabilidade e esclarecimento de homens e mulheres que, profundamente desejem fazer amor e filhos. Se a família, a escola e o Estado não tratarem da educação sexual e formas de prevenção da gravidez indesejada ou precoce, além do aborto como uma questão de liberdade de escolha e direito à vida, principalmente da mulher, seremos hipócritas sustentando uma ideologia baseada na santa inquisição. Graças à Deus, à Deusa e ao Feminismo o tempo não para e, cedo ou tarde, considero que o aborto será legalizado no Brasil. Que esta pauta venha à tona com mais força a partir de outubro! Nosso país merece retornar à civilização e nossas crianças, meninas, adolescentes e mulheres tem direito à vida ao amor-próprio e à liberdade de escolha. Como diz o refrão: Meu Corpo, Minhas Regras!
Porto Alegre, 25 de junho de 2022.
*Segue a minha transformação da dor em estética no poema abaixo.
Ilustrações de Hans Bellman.
PENA DE VIDA – Nora Prado
O endereço era na rua Voluntários da Pátria.
Um edificiozinho comum de quatro andares
naquela rua barulhenta e cheia de camelôs.
Não tinha elevador e a entrada era gradeada.
O porteiro liberou a passagem para uma saleta
onde a atendente com esmalte nas unhas
descascadas, fazia crochê sentada na escrivaninha.
A sua displicência combinava com o aspecto
decadente do ambiente forrado com papel
de parede amarelo velho e desgastado.
Outras mulheres aguardavam sentadas
num silêncio miserável de quem sabe
o que as espera, depois, na sala ao lado.
Ela suava de calor e nojo por estar outra vez
à mercê de um médico para lhe devolver
o alívio de ter a sua liberdade de volta.
Foi de saia, sandálias e uma blusa rosa
elegante demais para aquele cenário
pobre e desolador no verão de dezembro.
Acertou o pagamento com a atendente
e, em seguida, o homem a chamou para dentro.
Disse-lhe para deitar na mesa sem precisar
tirar nem as sandálias. Seria bem rápido.
Tirou apenas a sua calcinha, deitou-se na mesa
e subiu a sua sai comprida até a cintura.
Logo sentiu um líquido gelado sobre o sexo
e o aparelho de metal abrindo-lhe o seu canal.
O som do outro aparelho começou forte e alto.
Uma sensação horrível de cólica se apossou
dela que pode imaginar o aspirador sugando
a semente enraizada no fundo do seu útero.
A dor insuportável a orientou a fechar os olhos
e rezar pela sua própria vida, onde parte dela se
desprendia para sempre nesse procedimento
clandestino realizado as duas horas da tarde.
Mas que semente mais forte e que raízes difíceis
de se arrancar! Uma espécie de tortura involuntária
e sem anestesia a fazia sentir o horror daquela hora.
Não se passaram mais do que quinze minutos, mas para
ela aquele tormento durou uma eternidade dolorosa
onde a culpa por sua imprudência foi paga
em sacrifício, por um açougueiro mal ajambrado.
Quando a máquina sessou a sua voz macabra sentiu o sangue quente e abundante escorrendo pelas suas pernas. O homem foi limpando e estancando o jorro com papel toalha algodão e gaze. Colocou um absorvente e vestiu as suas calcinhas. Ao se levantar sentiu uma tontura. Recebeu dele um comprimido. Antes que ela saísse lhe passou a receita de um anti-inflamatório e um analgésico caso ela viesse a sentir dor. Mas creio que a maior parte dela foi exorcizada na sessão de tortura do próprio consultório. Foi embora daquela amostra do inferno aqui na terra cambaleando por entre transeuntes anônimos que se espremiam pelas ruas na febre das compras de Natal. Apesar da dor eu sentia que recuperara a mim mesma e seguia rua acima determinada a nunca mais precisar de um castigo medonho como aquele. Ao chegar em casa tomei um banho e fui para cama. Só queria dormir e esquecer.
Porto Alegre, 25 de março de 2021.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.
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