
Neste fim de semana assisti ao documentário sobre a vida e obra de Chico Buarque de Holanda realizado pelo cineasta Miguel Faria Jr. Chico - Artista Brasileiro faz uma viagem pela vida de um dos nossos mais talentosos artistas e mestre da canção popular brasileira. Dono de inúmeras obras primas que marcaram para sempre o imaginário nacional, suas letras abarcam tanto as glórias ou infortúnios amorosos, o cotidiano do malandro ou do operário, as belezas da sua escola de samba preferida, a Mangueira, até as canções de protesto mais engajadas. Chico, assim como outro mestre, Caetano Veloso, tem o dom de compor a trilha sonora da nossa vida e definir para sempre os momentos marcantes da nossa história através da música. Aliás, letra e melodia sempre unidas de tal modo, que parecem terem nascido simultaneamente tamanha a harmonia entre elas. Os arranjos, belíssimos, também corroboram para que tudo o que este homem faça seja pontuado de lirismo, graça e uma poesia comovente.
Natural que uma das grandes figuras da música brasileira tenha outros registros cinematográficos narrando a sua potente e singular trajetória. O que há de interessante neste, além das observações de carreira feitas pelo próprio Chico, é a variedade de imagens correspondentes aos períodos tratados que inundam a tela e muitas de suas composições são interpretadas por outros cantores numa riqueza de releituras saborosas. Viajamos entre São Paulo e Rio de Janeiro onde o menino Chico se formou, passando por uma frutífera viagem para Roma, onde o pai, Sérgio Buarque lecionou e para onde a família se mudou abrindo os horizontes deste pequeno notável.
Chico chegou a cursar arquitetura, mas a música acabou se impondo mais forte e ele se revelou um dos grandes fenômenos dos festivais da canção popular engrenando na carreira musical, para sempre, na década se sessenta. Com o recrudescimento da ditadura militar, Chico e Marieta Severo, com quem tinha se casado, se autoexilaram na Itália, especificamente, em Roma onde Chico tinha sido tão feliz na sua infância. Vinha de bem-sucedidas estreias nos palcos e nos discos, como compositor de inúmeros sucessos e com um bom pé de meia. Mas depois de um tempo, com as crianças nascendo e a família aumentando teve que correr atrás de fazer shows e ganhar dinheiro para seguir sustentando a si e aos seus.
Voltar ao Brasil, anos mais tarde, foi um alívio apesar do país ainda viver na faze da distensão política de uma ditadura de raiz. Chico foi uma das figuras mais importantes para o movimento e luta pelas diretas já na década de oitenta. Uma quantidade enorme de letras de músicas suas foram censuradas e Chico sempre teve que alterar letras ou recorrer a metáforas cada vez mais fortes para burlar o autoritarismo dos anos de chumbo. Apesar de tudo, ele seguiu sendo um dos compositores mais festejados e amados do público, sempre gravando e lançando novos sucessos. Muito popular no rádio e na televisão, Chico colaborou em inúmeros projetos teatrais, elaborando texto e letras das canções, como por exemplo Os Saltimbancos e Gota d`Água. Adaptação da tragédia grega Medéia em parceria com Paulo Pontes o espetáculo foi um estrondoso sucesso de público e crítica e com a participação, inesquecível, de Bibi Ferreira.
Além disso, Chico também compôs trilhas para o cinema, como Dona Flor e seus Dois Maridos, Grande Circo Místico e Bye,Bye Brasil. Sua veia poética, literária e musical sempre produziu clássicos marcantes na cultura brasileira, mas encontrou, nos últimos anos, uma vertente na literatura tão potente quanto na música e no teatro. Chico lançou, ao todo, seis livros: O Leite Derramado, Budapeste, O Irmão Alemão, Estorvo, Benjamim e Essa Gente. Sua devoção à literatura parece ser tão fecunda quanto persistente, e produz com tanta propriedade na literatura quanto na música.
Nosso poeta segue em boa forma e melhor companhia, ao lado dos netos com quem canta e se encanta e ao lado dos amigos com quem segue batendo uma bola. O futebol segue sendo uma das suas paixões ao lado da Mangueira onde já saiu como homenageado pela Verde e Rosa em 1998.
Ao longo do filme, entre músicas e depoimentos de Chico, há leituras de trechos de seus livros na voz de Marília Pêra. Tudo feito com simplicidade, despojamento e no capricho. Lá está o nosso Chico passeando pelo seu apartamento que descortina a bela vista para os morros e a floresta exuberante do Rio de Janeiro, cenário místico e paisagem emotiva de toda a sua canção.
O título acerta precisamente ao nomear o documentário de Chico - artista brasileiro, verso de uma de suas composições mais lindas e que resumem a felicidade de termos Chico como o suprassumo da cultura brasileira. Segue impávido como vela aberta e certa a singrar para sempre os mares da nossa terra, farol aceso, norte para resistirmos e seguirmos adiante “apesar de você, pois amanhã há de ser outro dia.”
Porto Alegre, 30 de agosto de 2021.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.