OS EUA DE TRUMP E O BRASIL DE 64: A MESMA RETÓRICA, O MESMO INTERESSE
- Alexandre Costa
- 14 de set.
- 6 min de leitura
Atualizado: 15 de set.
POR ALEXANDRE COSTA | ESQUINADEMOCRATICA.COM.BR

A condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro e de militares golpistas pelo STF em 2025, por tentativa de golpe e atentado à ordem democrática, simboliza o rompimento com a impunidade do presente (Reuters, 2025). Em paralelo, em Petrópolis, a Justiça Federal condenou, em setembro de 2025, dois ex-militares — Rubens Gomes Carneiro e Antonio Waneir Pinheiro Lima — pelo sequestro, tortura e morte, com o desaparecimento do corpo do advogado goiano Paulo de Tarso Celestino da Silva, capturado em 12 de julho de 1971. Levado para a "casa da morte", o militante passou por um ritual de violência do qual somente Inês Etienne Romeu sobreviveu e pode contar os horrores vividos naquele imóvel (Brasil de Fato; Agência Brasil, EBC, 2025).
Apesar da distância de tempo entre os crimes (a tentativa de golpe no 8 de janeiro de 2023 e o assassinato do advogado em 1971), os dois fatos fazem parte de um mesmo contexto. O apoio do presidente dos EUA Donald Trump a Bolsonaro e aos militares golpistas segue a mesma retórica, a defesa da liberdade como pano de fundo para violar a democracia e explorar economicamente o Brasil.
Por isso, é importante ressaltar que o golpe de 1964 não foi apenas uma mudança de governo: inaugurou um ciclo de violência de Estado, com prisões arbitrárias, censura e tortura sistemática. E, em cada etapa, o apoio norte-americano foi peça-chave para que as atrocidades prosperassem.
A taxação de 50% nas exportações e as ameaças à soberania do Brasil demonstram que apesar de mais de meio século, os EUA seguem tratando o Brasil como o seu quintal. Neste sentido, as condenações serviram também para retirar o manto que escondia o real interesse de Bolsonaro em relação ao país.
São capacho dos EUA: trabalham contra o povo e prejudicam o próprio país, sempre submissos aos interesses das multinacionais e subordinados ao capital externo, às elites e aos mais ricos.
MESMOS RISCOS E MEDOS
Os relatos de sobreviventes que ousaram se opor à ditadura militar brasileira descrevem práticas brutais. Choques elétricos, pau-de-arara, afogamentos, violência sexual e espancamentos compuseram o repertório dos órgãos de repressão, como o DOI-Codi. A tortura não era exceção, mas política de Estado. Documentos desclassificados nos Estados Unidos e divulgados pelo National Security Archive confirmam que Washington sabia da existência desses métodos. Um relatório de 1973 descreve técnicas aplicadas por militares brasileiros contra prisioneiros, inclusive com mortes em sessões de interrogatório.
Além da violência física, houve censura à imprensa, perseguição a artistas e intelectuais, cassações de mandatos e intervenções em sindicatos e universidades. A ditadura também fechou o regime político, com o AI-5 em 1968, e reprimiu movimentos sociais que lutavam por direitos básicos. O apoio externo foi essencial para sustentar esse sistema. Os EUA liberaram créditos para obras de infraestrutura, como a Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói, e garantiram suporte diplomático ao regime. Ao mesmo tempo, a CIA atuava em toda a América Latina, fortalecendo aparelhos repressivos em nome do combate ao comunismo (Superinteressante).
A contradição era evidente: enquanto os EUA pregavam liberdade e democracia, patrocinavam ditaduras. Essa política só começou a ser questionada em meados dos anos 1970, após o escândalo de Watergate e a pressão da opinião pública diante da Guerra do Vietnã. O presidente Jimmy Carter chegou a condicionar ajuda a compromissos de direitos humanos, pressionando o governo Geisel a reduzir a violência. Mas, com Ronald Reagan nos anos 1980, o apoio a regimes autoritários voltou a ser a regra.
As condenações no STF e na Justiça Federal, em Petrópolis, representam um avanço na luta contra a impunidade. No entanto, apesar dos 54 anos entre os dois fatos, paira no ar a sensação de que ainda vivemos ameaçados pelos coturnos no “mesmo” Brasil, diante dos mesmos riscos e medos.
CONEXÃO ENTRE PASSADO E PRESENTE
O anúncio do presidente Donald Trump, em 2025, de uma tarifa de 50% sobre exportações brasileiras, expôs mais uma vez a assimetria na relação entre Brasil e Estados Unidos. “Eles precisam de nós muito mais do que nós precisamos deles”, disse Trump, reforçando que a soberania brasileira pode ser negociada como simples variável de poder econômico.
A declaração ecoa práticas que já marcaram a história: em nome da “defesa da liberdade”, os EUA intervieram no Brasil em 1964, apoiaram a ditadura e moldaram nossa economia conforme seus interesses.
A conexão entre presente e passado revela um padrão. No dia 27 de março de 1964, o embaixador Lincoln Gordon enviou a Washington uma carta recomendando apoio ao golpe militar para evitar que o Brasil “se tornasse uma China nos anos 1960”. Dias depois, a Operação Brother Sam mobilizou navios de guerra dos EUA para apoiar os generais, caso houvesse resistência. Não foi necessário: João Goulart foi deposto sem reação, e Lyndon Johnson reconheceu imediatamente o novo regime (Brasil de Fato; FRUS, Departamento de Estado).
O terreno para o golpe já havia sido preparado anos antes. Em 1961, John Kennedy lançou a Aliança para o Progresso, irrigando governos estaduais de oposição e enfraquecendo Jango.
O Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), financiado com dinheiro dos EUA, espalhava propaganda anticomunista em rádios, TVs, cinemas e novelas. Os recursos enviados para as eleições parlamentares de 1962 superaram o gasto da própria campanha presidencial norte-americana de 1960. Além disso, políticos como Mário Covas e Ulysses Guimarães foram convidados a viajar aos EUA, numa estratégia de soft power que décadas depois se repetiria com juízes como Sérgio Moro e Deltan Dallagnol. A Escola Superior de Guerra, criada nos anos 1940 com forte inspiração norte-americana, formou os oficiais que comandariam o golpe (Marcus Dezemone; CPI do IBAD/IPES).
Se no passado os EUA moldaram a política brasileira com armas, propaganda e financiamento, hoje o fazem pela via econômica. Em 2024, o fluxo comercial Brasil-EUA chegou a US$ 81 bilhões, quase equilibrado em números, mas desigual em estrutura: o Brasil exportou petróleo, café, aço, carnes e aviões; os EUA venderam combustíveis, produtos químicos, fertilizantes e aeronaves de alto valor agregado (MDIC; G1). No ano anterior, os EUA investiram mais de US$ 350 bilhões no país, com quase 4 mil empresas em operação (Banco Central; Amcham Brasil).
O resultado é um quadro de dependência. Especialistas da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) e da Amcham destacam que, embora a relação seja “complementar”, os EUA acumulam superávits expressivos e detêm a vantagem tecnológica. As tarifas impostas por Trump, somadas à retórica de que “o Brasil precisa deles”, são a face mais recente de um padrão que remonta à Guerra Fria.
A retórica da “liberdade” norte-americana, ontem usada contra o comunismo e hoje contra supostos riscos econômicos, é apenas uma justificativa dos EUA para seguir explorando o Brasil, garantindo a manutenção da hegemonia e o controle sobre parceiros estratégicos.
Cabe ao Brasil enfrentar a realidade de que sem memória histórica e sem política externa independente, a soberania seguirá refém da lógica da submissão.
LINHA DO TEMPO DAS ATROCIDADES DA DITADURA (1964–1985)
1964 – O GOLPE E OS PRIMEIROS ATOS DE REPRESSÃO
Deposição de João Goulart em 31 de março. Prisões em massa de sindicalistas, estudantes e opositores políticos. Cassações de mandatos parlamentares e perseguição a lideranças de esquerda (CNV; El País).
1965 – FECHAMENTO DO SISTEMA POLÍTICO
Extinção dos partidos existentes e criação do bipartidarismo (ARENA e MDB). Perseguição a militares legalistas contrários ao golpe.
1968 – AI-5 E O ENDURECIMENTO DO REGIME
Atos Institucionais ampliam os poderes do Executivo. Suspensão de habeas corpus em crimes políticos. Escalada da censura à imprensa, perseguição a artistas e intelectuais. Crescimento da prática sistemática da tortura (CNV).
1969 – SURGIMENTO DO DOI-CODI
Criação do DOI-Codi (Destacamentos de Operações de Informações). Início da fase mais brutal da repressão, com torturas, desaparecimentos e execuções clandestinas. Sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick por militantes da esquerda armada; o episódio reforça a repressão estatal.
1970–1973 – A “DÉCADA DE CHUMBO
”Prisões em massa de militantes estudantis, sindicalistas, religiosos e opositores. Técnicas de tortura documentadas: pau-de-arara, choques elétricos, afogamento, violência sexual, espancamentos. O National Security Archive registra que os EUA tinham conhecimento das práticas e relatórios sobre mortes em interrogatórios.
1975 – O CASO VLADIMIR HERZOG
O jornalista é preso no DOI-Codi de São Paulo e assassinado sob tortura. A versão oficial de “suicídio” é desmentida por provas e mobilização da sociedade. Marco de denúncia internacional contra o regime.
1976 – O CASO MANOEL FIEL FILHO
Operário metalúrgico morto sob tortura, também apresentado como “suicídio”. Pressão interna e externa força o governo Geisel a demitir o comandante do II Exército, general Ednardo D’Ávila Melo.
1977–1979 – RESISTÊNCIA E ANISTIA
Mobilização social contra o regime cresce. A Lei da Anistia (1979) beneficia perseguidos políticos, mas também garante impunidade aos torturadores.
1980–1985 – ABERTURA LENTA E GRADUAL
Greves do ABC e ascensão de novos movimentos sociais e sindicais. Persistem a vigilância e a repressão seletiva.
1985: fim formal da ditadura, sem julgamento dos responsáveis pelas atrocidades.
BALANÇO (CNV)
Pelo menos 434 mortos e desaparecidos políticos (El País). Milhares de presos, torturados e cassados. Tortura reconhecida como política de Estado.

— Brasil de Fato: participação dos EUA no golpe de 64 (brasildefato.com.br)
— FRUS – Office of the Historian: documentos da Operação Brother Sam (state.gov)
— CPI do IBAD/IPES: financiamento eleitoral e propaganda (camara.leg.br)
— National Security Archive: relatórios sobre tortura na ditadura (nsarchive.gwu.edu)
— Superinteressante: “Segredos da CIA no Brasil” (super.abril.com.br)
— G1: comércio Brasil-EUA e tarifas de Trump (g1.globo.com)
— Banco Central/Amcham Brasil: investimentos diretos dos EUA no Brasil (bcb.gov.br; amcham.com.br)
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