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CAPÍTULO 4 — CULTURA, RELIGIÃO E RESISTÊNCIA: A ALMA NEGRA QUE SUSTENTA O BRASIL

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por Alexandre Costa | jornalista

A escravidão tentou quebrar corpos. O racismo tentou apagar histórias. A violência tentou silenciar vozes. Nenhuma dessas tentativas funcionou.

A cultura, a espiritualidade e a memória negra atravessaram séculos como rio subterrâneo que, mesmo bloqueado, continua correndo. Nasceram nos quilombos, nos terreiros, nos batuques, nos tambores, nos carnavais, nos pagodes, nas ladeiras das cidades, nas periferias e nos becos.


Este capítulo revela o que o Brasil inteiro sabe — mas raramente reconhece: a alma deste país é negra.


A CURA QUE VEIO ANTES DA DOR: RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

Quando os africanos escravizados chegaram ao Brasil, trouxeram consigo uma cosmologia complexa, sofisticada e milenar. Trouxeram os orixás, os Inquices, os Voduns. Trouxeram o axé, a ideia de ancestralidade, a noção de tempo circular, a sabedoria coletiva, o valor da comunidade.


Essas tradições sobreviveram sob chicote, sob censura, sob criminalização e sob ataque. Mas sobreviveram. E se tornaram resistência cultural.


No Brasil, a espiritualidade negra se expressa em:

• Candomblé

• Umbanda

• Batuque (fortíssimo no Rio Grande do Sul) • Tambor de Mina

• Jurema Sagrada

• e incontáveis casas de matriz afro espalhadas pelo país

Mesmo sendo parte da base espiritual brasileira, essas religiões foram demonizadas por mais de um século — um racismo religioso que ainda hoje destrói terreiros, criminaliza mães e pais de santo, e tenta reduzir orixás a estereótipos.

Mas elas resistem porque são raiz. Cura. Caminho. Memória.


EXU — O SENHOR DO TEMPO, DA PALAVRA E DOS CAMINHOS

Nenhum capítulo sobre espiritualidade negra seria completo sem ele: Exu. O orixá mais mal interpretado da história, alvo preferencial da demonização colonial e cristã.

Na tradição iorubá e em todas as casas de matriz africana:

• Exu não é diabo

• não é mal• não é ameaça

Exu é movimento, comunicação, vitalidade, inteligência, tempo.

É o orixá que abre caminhos, protege o terreiro, leva e traz mensagens, conecta mundos. É quem lembra que o tempo não é linha reta: é encruzilhada.

E é por isso que seu provérbio ecoa tanto:

“Exu matou um pássaro ontem com a pedra que só jogou hoje.”

Esse ensinamento diz que:

• a vida não obedece ao relógio colonial

• justiça pode chegar antes ou depois

• passado e futuro se misturam

• sabedoria não é linha reta: é curva, é dobra, é retorno


Essa frase, em si, já explica o Brasil. Porque aqui nada termina. Tudo volta. Tudo cobra. Tudo exige reescrita.


O BATUQUE — A RELIGIÃO NEGRA DO SUL

O Rio Grande do Sul não é apenas o estado mais branco do Brasil. É também um dos públicos mais ativos das religiões afro.

O Batuque, uma tradição de matriz africana com raízes banto e iorubá, tem no RS um de seus maiores centros — com milhares de terreiros espalhados entre Porto Alegre, Região Metropolitana e interior.

No Batuque:

• Exu é guardião • as mães e pais de santo são lideranças comunitárias • o toque e o tambor são memória viva • as divindades mantêm vínculos com a vida cotidiana • resistência é disciplina, cuidado e axé

Mesmo assim, casas são queimadas, atacadas, invadidas e perseguidas. A intolerância religiosa é a face mais atual de um racismo que se recusa a morrer.

Mas o Batuque resiste porque, onde há silêncio, o tambor responde. E onde há apagamento, o axé reconstrói.

A ARTE NEGRA COMO LÍNGUA DO BRASIL

Se apagaram monumentos, igrejas e arquivos, não conseguiram apagar o som. A arte negra inventou o Brasil que existe.


Na música:

• o samba, nascido da resistência de mulheres negras

• o choro, surgido das mãos de músicos afrodescendentes

• o afoxé, que levou o candomblé para a rua

• o pagode, herdeiro das rodas africanas

• o funk, som das periferias

• o rap e o hip hop, escolas da palavra e da consciência


Sem cultura negra, não existe música brasileira.


Na dança:

• capoeira

• samba no pé

• maculelê

• danças de orixás

A gestualidade negra moldou o corpo brasileiro.


Na literatura:

• Machado de Assis

• Lima Barreto

• Carolina Maria de Jesus

• Conceição Evaristo

• Elisa Lucinda

• José Carlos Limeira

Palavras que surgiram da dor, da fome, da rua, do sonho — e que se tornaram espelho.


No teatro:

• Abdias do Nascimento

• Teatro Experimental do Negro

• Pretagô, no RS

• grupos negros rompendo palcos monocromáticos

Sem a arte negra, não existe imaginário brasileiro.


OS TERREIROS COMO ESPAÇOS DE PROTEÇÃO E POLÍTICA

Nos terreiros, muito antes do Estado brasileiro reconhecer qualquer direito, já se praticava:

• acolhimento psicológico

• economia solidária

• cuidado coletivo

• educação

• preservação da saúde

• estabilidade emocional

• identidade cultural

Terreiros sempre foram políticas públicas antes de existir governo. E sempre foram resistência.

Por isso são perseguidos. Por isso sobrevivem.


RS: CULTURA NEGRA QUE O ESTADO RECUSOU VER

No Rio Grande do Sul:

• o samba nasceu na Cidade Baixa antes da boemia branca

• Lupicínio Rodrigues deu ao Brasil a dor que só o negro sabia cantar

• quilombos urbanos moldaram POA

• carnavais foram construídos por artesãos e carnavalescos negros

• a música negra da Restinga, Rubem Berta e Lomba do Pinheiro resiste até hoje

• Pretagô rompeu o teatro branco

• Negra Jaque, Negra Maria, Negro Rud e dezenas de MCs moldam a cena


RESISTÊNCIA E CONSTRUÇÃO DO FUTURO

A cultura negra é mais que cultura: é sobrevivência. A religião negra é mais que fé: é cura. A ancestralidade é mais que memória: é futuro.

E é por isso que, num país que insiste em silenciar o negro, a espiritualidade e a arte se tornam armas — armas de vida, de sentido, de continuidade.


No próximo capítulo, a narrativa se fecha no ponto onde tudo começou: o tempo, essa matéria que Exu torce, dobra, rompe e refaz.


É ali, na encruzilhada entre passado e futuro, que está a conclusão deste especial.


Alexandre Costa é responsável pelo www.esquinademocratica.com.br 

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