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Foto do escritorAlexandre Costa

Uma dose extra de perversidade, por Marina Amaral*

O artigo "Uma dose extra de perversidade", da diretora executiva e editora da Pública - Agência de Jornalismo Investigativo trata do ódio às mulheres, como componente dos crimes cometidos por agentes do Estado, da ditadura militar à execução de Marielle.

“Você vai parir fogo”, disse o torturador da Polícia do Exército, enquanto aplicava choques elétricos na vagina de Dulce Maia, militante da VPR. Depois a estuprou. Com 29 anos, ela viu seus cabelos embraquecerem da noite para o dia; nunca mais menstruou.


A jornalista Rose Nogueira, presa quando amamentava o filho de 33 dias, seviciada e violentada com os peitos ainda cheios de leite, foi apelidada de Miss Brasil por seu torturador no Dops.


Ele não se referia ao concurso de beleza, mas a uma vaca leiteira premiada em uma exposição. “O torturador fazia questão de mostrar a fotografia da vaca Miss Brasil no jornal. Dizia que eu era uma vaca terrorista”, contou Rose à jornalista Luiza Villaméa. 


Autora do livro A torre – o cotidiano de mulheres encarceradas pela ditadura, Villaméa fez uma centena de entrevistas e pesquisou milhares de documentos em arquivos durante dez anos para contar como essas mulheres se organizavam e se relacionavam na prisão na torre incrustada no presídio Tiradentes, em São Paulo. 


Quase todas chegaram ali traumatizadas pela tortura, muitas estupradas, todas submetidas a uma dose extra de perversidade, um indisfarçado ódio misógino que salta aos olhos de quem lê.


Eu estava no meio dessa leitura, enquanto acompanhava atentamente a série cheia de revelações da Pública sobre os 60 anos da ditadura – sim, presidente Lula, nunca foi mais importante relembrar essa data –, quando a notícia sobre a prisão dos novos acusados no assassinato de Marielle Franco me fez ligar a TV às 7 da manhã no domingo passado. 


A dor e o susto estampados nos olhos da irmã e mãe de Marielle – ministra Anielle Franco e dona Marinete – ao tomarem conhecimento ao vivo de que o delegado Rivaldo Barbosa foi apontado como um dos autores do crime me comoveram e trouxeram uma estranha sensação de déjà-vu.


Sim, eu já tinha visto aquela expressão de desamparo nos rostos de mães, irmãs e esposas de outras vítimas de crimes cometidos por agentes do Estado. Dos mortos em operações policiais em lugares pobres, como a Maré de Marielle, às vítimas da ditadura militar. 


Marielle foi morta por ordem de um deputado federal e um conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, em um crime desde o início acobertado pelo chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, segundo a Polícia Federal (PF).


Quando é o Estado que mata você recorre a quem?


Li o relatório de 479 páginas da PF (na íntegra na internet), a que os deputados do Congresso Nacional disseram “não ter tido acesso” como pretexto para postergar a votação sobre a prisão de Chiquinho Brazão. Embora seja consistente, apesar da dificuldade de comprovar pontos da delação de Ronnie Lessa seis anos depois do crime, como observou meu vizinho de coluna, Rubens Valente, fiquei com a sensação de que faltava algo na motivação do crime. 


Sim, Marielle tinha um papel importante na contenção da expansão territorial das milícias associada à especulação imobiliária, como diz o relatório. Também teve participação ativa, como assessora de Marcelo Freixo na CPI das Milícias.


E se notabilizou, como vereadora, na fiscalização da intervenção militar na segurança do Rio de Janeiro, quando o general Richard Nunes indicou Rivaldo Barbosa para a chefia da polícia, uma semana antes do crime.


Mas para muita gente, especialmente mulheres que durante todo esse tempo pressionaram em ruas e redes para que o caso não fosse esquecido, a condição de mulher negra, favelada, feminista e LGBT, incansável na denúncia da violência policial e de gênero,  parece inseparável do crime que a vitimou. 


Isso não quer dizer que seja um “crime de ódio”, como tentou justificar a polícia comandada por Rivaldo na esperança de arrefecer o clamor popular pelo mandante. Trata-se de um homicídio cometido por profissionais, com interesses políticos e econômicos no ecossistema do crime do Rio, como disse o ministro Flávio Dino. 


Foi quando me lembrei de um artigo assinado em 2019 pela doutora em comunicação social e deputada estadual Renata Souza (PSOL-RJ), quando apenas os executores do crime eram conhecidos, e não os mandantes. O título, “O feminicídio político de Marielle Franco”, refere-se a um conceito desenvolvido academicamente por ela durante o pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF) e pode ser aplicado a outras mulheres que tiveram suas vozes caladas pela violência, como a juíza Patrícia Acioli, morta por PMs, ou Dorothy Stang, executada por pistoleiros a mando de fazendeiros no Pará.


Liguei para a deputada, amiga de Marielle e como ela “cria da Maré”, além de chefe do seu gabinete durante o mandato abreviado pela execução da vereadora. Em uma conversa de meia hora, ela se declarou convencida da realidade da trama revelada pela PF “como ponto de partida para novas investigações”. Falou também da impossibilidade de julgar o que é motivo para matar na cabeça de assassinos, principalmente quando os criminosos tinham desde o início a guarida de um agente de Estado, o delegado Rivaldo, e trouxe outras reflexões, que compartilho aqui.


“Depois de conseguir pensar em quão frágil era [essa estrutura de investigação do estado do Rio], também penso o quanto o corpo da Marielle era esse corpo matável na política, e quanto enfim é possível que essas insatisfações com a atuação dela tenham levado ao crime. Mas acredito que não é só isso. Há todo um conjunto de situações que colocam esse corpo matável de uma mulher pobre, preta, LGBT. Aquela novata na política que ousou demais, em pouco tempo, dentro de uma estrutura formatada para eles, homens brancos, que têm a política como herança e a violência como metodologia política. Tem as causas objetivas, mas também as subjetivas. Acho que eles acharam ousadia demais uma mulher como aquela desafiar de peito aberto o poderio político que eles já tinham além da certeza da impunidade. Faz sentido dentro de uma lógica miliciana calcada no Estado diante de um corpo matável. É, sim, um feminicídio político”, concluiu a deputada. 


Seja nos porões da ditadura dos militares ou no “política, polícia e crime” do Rio contemporâneo, os corpos das mulheres são “matáveis”, “torturáveis”, “estupráveis” e continuarão a sê-lo se deixarmos de gritar por justiça da maneira que aprendemos a fazer com familiares, companheiros e amigos de vítimas da ditadura que se pretende esquecer: Marielle, presente!

* Marina Amaral é jornalista desde 1984 com passagens pelas redações da Folha de S. Paulo, revista Globo Rural, TV Record e TV Cultura. A partir de 1997, passou a atuar no jornalismo independente, participando da fundação da Revista Caros Amigos, da qual foi repórter especial e editora executiva até 2007.

Nesse período conquistou um Prêmio Herzog pelo conjunto de reportagens publicadas em Caros Amigos (1998) e uma menção honrosa em conjunto com o jornalista João de Barros (2004). Entre 2008 e 2009, coordenou uma equipe de 13 jornalistas em levantamento inédito sobre Direitos Humanos no Brasil, a pedido da Secretaria Nacional de Direitos humanos e atuou como repórter no livro "Jornal Movimento, uma reportagem". Desde 2011 é diretora e co-fundadora da Agência Pública.

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