Um cavalo no telhado, por Nora Prado*
- Alexandre Costa
- 15 de mai. de 2024
- 3 min de leitura

Dentre as centenas de imagens da tragédia gaúcha pelas inundações da última semana, uma delas chamou a atenção por ser tão bizarra quanto inesperada. Um cavalo se equilibrando entre as duas folhas de um telhado de zinco estreito e comprido sobre as águas do lago Guaíba. Ora, um cavalo se reconhece pela sua força e beleza, pela sua independência e liberdade.
Um cavalo se reconhece pelo trote sincopado ou pelo galope deslumbrante sobre as campinas e coxilhas do Rio Grande, jamais como se fosse uma galinha empoleirada. O extremo oposto do que mostra a foto, onde vemos um ser amedrontado, preso e acuado, tão vulnerável sobre aquele espaço ínfimo para o porte de sua majestade, momentaneamente, ultrajada. Pois essa imagem emblemática e distópica me parece ser a mais completa tradução do terror vivido pelos gaúchos nos últimos onze dias.
Representa todos nós paralisados aguentando estoicamente em meio a total desolação.
Triste saber que a maioria dos seus pares e parentes animais de quatro patas não tiveram a mesma sorte. Porcos, vacas, ovelhas, cavalos, carneiros e galinhas se afogaram irremediavelmente e sem chance de salvamento. Em alguns lugares onde a água abaixou, um pouco, já é possível observar o saldo macabro desta calamidade.
Mas o que mais me choca é saber que nossos governantes sabiam do perigo iminente que o Estado corria e não fizeram nada para prevenir os danos profundos causados por essa inundação sem igual. Ao contrário, suas gestões incompetentes e estapafúrdias ultrapassaram os limites permitidos pela legislação, destruindo mananciais verdes e bacias hídricas, construindo obras duvidosas sobre terrenos impróprios e sabotando, sistematicamente, o DMAE, Departamento Municipal de Águas e Esgotos da cidade de Porto Alegre. Repassando verbas ínfimas para manutenção e equipamento da rede e diminuindo o efetivo humano que trabalha neste órgão fundamental. Fazem o “diabo”, sistematicamente, para conseguirem privatizar um órgão que em outros tempos cumpriu plenamente as suas funções na capital.
Eduardo Leite e Sebastião Melo não foram capazes de investir recursos nem depois das cheias dos temporais do ano passado que foram terríveis. Uma omissão criminosa que produziu, sem dúvida, esse desfecho deprimente e nefasto.
Ainda estamos na fase de salvamento e acolhimento das milhares de vítimas desse horror, mas é fundamental repensarmos sobre as medidas de contenção das águas do lago Guaíba e das outras cidades próximas aos afluentes dos rios dos Sinos, Jacuí, das Antas, Caí e tantos outros. Há regiões como a da cidade de Eldorado do Sul, vizinha à Porto Alegre, por exemplo, que eu imagino seja impraticável reconstruir a cidade ali, já que foi completamente submersa pelas águas. Assim como Eldorado, talvez seja o caso de transferir outras cidades densamente inundadas para outras regiões potencialmente mais seguras e longe dos rios.
Vai implicar numa nova ordem de planejamento urbano com especialistas das áreas de geologia, urbanismo, meteorologia, engenharia e cientistas especialistas em questões climáticas, recursos hídricos e de solo. Será necessário um esforço conjunto de estudo e planejamento na busca de soluções para os novos tempos. Tempos de catástrofes e desastres ambientais mais frequentes. Não há como adiar mais essas medidas.
Com relação a capital, será fundamental investirmos em consultorias internacionais como por exemplo da Holanda ou Dinamarca que tem expertise e experiência concreta em relação a contenção de enchentes e lidam com inundações há séculos. Não há mais como tapar o sol com a peneira. Precisaremos votar com mais atenção e rigor neste ano, pois nossa sorte, enquanto cidadãos, depende dos novos governantes que necessariamente precisam realizar uma gestão mais consciente e comprometida com o bem-estar social do seu povo. Nada do que este time de trapalhões tenha feito até agora.
Até lá, há muito para ser feito. A roda econômica está praticamente parada neste momento. O comércio e a indústria estão desmobilizados ou, como em muitos casos, falidos. O poder aquisitivo da população do estado está profundamente comprometido e sem chance de melhora a curto prazo. Serão tempos de cavalo no telhado, de muita resiliência, persistência e serenidade. De força e solidariedade. Tempos de empatia e resistência.
Até lá, sei que poderemos contar com o apoio dos nossos irmãos brasileiros que se mostraram prontos a nos auxiliar neste momento de extrema aflição. Assim como o cavalo no telhado foi resgatado, sigo crendo que seremos resgatados deste cenário degradante de terra arrasada. Neste instante de grande angústia e vulnerabilidade, nada como o poder da arte para salvar e nos encorajar. Lembro-me dos versos lindos de Carlos Drumond de Andrade: “... O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.”
Porto Alegre, 9 de maio de 2024.
