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ALAMBRADO, POR PAULO GAIGER*

Contemplação! Ah, a boa e bela contemplação, essa mesma que solicita tempo, silêncio, pensamento desocupado e olhar apurado e sensível. Um verbo bom de conjugar desde a espreguiçadeira, a rede, a cadeira confortável, o capim guarnecido pela sombra do jacarandá. O velho Alcemar tirava sempre algum tempo do tempo dos dias para a contemplação. “É o elixir da vida e de como aprender a morrer bem”, dizia. Também falava sobre importância de toda a gente ter um tempo para a contemplação, de que seria bom para o mundinho ficar melhor e mais cheio de beleza. Quem o via horas e horas na espreguiçadeira, na rede, na cadeira do vovô ou debaixo do jacarandá, poderia pensar que era um velho folgado, que ao invés de produzir algo, deixava todo o labor para a família. Talvez merecesse, considerando seus 80 anos recém feitos, mas aqui na colônia, se trabalha até ser carregado para o campo-santo com exéquias, carpideiras e luto por sete dias, no mínimo. “Virou velho safado”, comentava entredentes gente da vizinhança. Um passarinho de peito avermelhado pousava todos os dias, na mesma hora e no mesmo galho do jacarandá, como se tivesse marcado encontro fixo e levasse um relógio mágico porque nunca se atrasava. Só faltava em dias chuvosos ou de muito vento. Nos dias ensolarados, o velho Alcemar estava sempre ali e, para os que observavam à distância, parecia que conversam. “Folgado e louco”, troçavam à surdina. Não somente com o passarinho, a quem o velho chamava carinhosamente de Colorado, mas também com a brisa quando esta acariciava a pele, os poucos cabelos brancos, os capinzais, a primavera e os jasmins que perfumavam a varanda, Alcemar fazia correr a prosa. E tudo indica que escutava seus interlocutores, suas visitas estranhas, porque fazia pausas, gestos e expressões, espichava o corpo, ria ou ficava com cara de preocupado como quem realmente estava a ouvir algo, uma notícia, um comentário, um recital. De passarinho e de brisa. De tantos comentários depois da missa e do culto, nos almoços comunitários no salão paroquial, na fila da pulperia, no postinho de saúde ou no bolicho, a família de Alcemar começou a ficar preocupada com a sanidade do velho. Estará louco como o povo anda falando aos quatro ventos? Ou só está se fazendo? O velho trocou as missas dominicais pela contemplação. Muito estranho tudo isso! Letícia, a filha mais velha, foi ao encontro do pai para fazer uma espécie de averiguação de seu estado de saúde e ter uma conversa olho no olho. Até então, a família vinha entendendo o comportamento do Alcemar como capricho, coisa da velhice, coisa engraçada até, e não via nada demais em ele ficar horas e horas contemplando a natureza, falando com o Colorado e com a brisa. Não fazia mal a ninguém. Todavia a falação do povo e o último sermão do padre e do pastor, aludindo à presença de satanás no corpo de gente que fala com bicho e com o vento, trouxe apreensões que não existiam antes. A filha se aprochegou pé por pé, com muita cautela para não perturbar o momento sagrado do pai, como ele mesmo denominava, colheu sua mão em sua mão, sorriu, fez um cafuné nos cabelos brancos e ia perguntar quando ele se adiantou: “Também te amo minha filha. A bem da verdade, amo toda a minha família, claro, amores diferentes, mas lindos e sinceros. Mas a ti, que conheço desde o ventre de tua mãe, não tem amor igual. Até o Colorado sabe disso!”. Ela ficou paralisada, com os olhos feito represa. “Não chora, não, filha. Enxuga esses dois açudes. Toma aí meu lenço. Tá limpinho. O amor é para fazer festa, para se alegrar, não concorda? Quanta gente não consegue amar e, pior ainda, nem ser amada? A brisa, essa minha amigona, que percorre campos e cidades, vive me trazendo histórias de gente muito infeliz, que não sabendo ser amada nem amar, fica falando e maldizendo os outros, querendo briga. Isso é que é triste”. A filha ficou sem saber o que dizer, em como formular a primeira pergunta: “Pai, tu estás te sentindo bem? A gente te vê falando com passarinho, com o vento... isso parece tão estranho. O pessoal anda falando...”, mas não conseguiu. Abraçou o pai, deu-lhe um beijo na face e permaneceu a seu lado. Os dois em silêncio. A brisa começou a afagar pai e filha, suavemente, movendo folhas secas, penteando a grama à frente da varanda, levando ao chão algumas flores envelhecidas. Alcemar abriu os olhos e fitou a brisa como se estivesse na frente de alguém. Letícia acompanhou as reações do pai e buscou decifrar e, quem sabe, até ouvir alguma voz por detrás do pequeno balanço das árvores. Concentrou-se na ação de escutar, perscrutar, sentir algo diferente do toque da brisa em suas roupas, em sua pele. “Letícia”, o velho interrompeu o esforço e a concentração da filha. “Que foi pai?”. “Eu deveria ter adivinhado... esse povo fala muito, pelos cotovelos, meio sem juízo... e ouve pouco e apenas usa os olhos para mexericar a vida alheia e depois caluniar, difamar... como não entendem, fuzilam com suas bocas e maldições”. Alcemar ficou fitando o leve balançar das folhas da primavera. “Letícia, ontem o Colorado já me havia advertido de que o pastor e o padre disseram aos fiéis de que velho como eu, assim, já meio sem serventia, mas de mãos calejadas, sola dos pés grossas e dores nas articulações, uma ossada que nem pra alegria dos cachorros irá servir, só porque fala com passarinhos e com a brisa, tá com o coisa ruim no corpo. Tem cabimento uma coisa dessas? Eles não ficam falando com Deus e não sei com quem mais? Como é que alguém não lhes chama a atenção por dizerem bobagens, e bobagens perigosas, aqueles dois, que coisa... e esse povinho mexeriqueiro vai atrás dessa conversa mole”. Letícia ouviu com admiração a fala do pai e sentiu-se desarmada para tentar contrapor ou insinuar qualquer possibilidade de que o velho estivesse mentalmente perturbado, vendo e ouvindo coisas do além. O relato do passarinho Colorado lhe pareceu uma prova contundente, como ele poderia saber dos sermões se fazia anos que não ia à missa e nunca foi ao culto? O pai não estava louco, quem estava louca era essa gente faladeira e sem noção. “Minha filha, mas se é para acabar com os mexericos de que estou possuído ou perturbado, quem sabe tu me levas à cidade para fazer uma bateria de exames, a um psiquiatra, sei lá, a esses médicos que cuidam da cabeça. Que tu achas?”. “Pai, como é que se faz para ouvir e entender a brisa e os pássaros? Há pouco, eu tentei, mas não consegui!”. O velho pegou a mão da filha, acarinhou. “Acho que é preciso desocupar a cabeça de pesadelos, conceitos, preocupações, desejos e se deixar conduzir, se deixar levar... Não se trata de ter fé, porque a fé é sempre uma negociação. Filha, não é preciso querer provar nada, é só deixar o corpo aberto, sem pedir nada em troca. A contemplação, a meditação ajudam. Quando comecei, nem pensava que um dia estaria a conversar com a brisa, com o Colorado, com os bichos noturnos... veio assim, sem mais, e não fiquei assustado. Ao contrário, são companhias agradáveis”. À noite, Letícia falou com o resto da família sobre o que tinha vivenciado. “Tu também enlouqueceste, entrou na conversa do velho”, acusou o irmão mais novo. “Só em filme alguém fala com passarinho, e nunca vi ninguém falar com o vento, é muita doidice. Todo mundo tá falando que papai tá com os miolos frouxos. Isso se não for coisa bem pior. Acho legal aceitar a sugestão dele: levá-lo pra cidade e fazer todos os exames recomendados para velhos dementes. Vão ver que logo essa febre passa”. Letícia foi voto vencido. A família organizou a viagem, agendou as consultas e os dois irmãos levaram Alcemar. Contrariada e deixada de lado pra não atrapalhar, Letícia ficou na casa. Contemplando. Uma sucessão de horas marcadas para a realização de tomografias, ultrassonografias, ressonâncias, angiografias, sessões com o psiquiatra, senilidade, bipolaridade, esquizofrenia, prozac, geodon, lamictal... e nenhuma taça de bom vinho que Alcemar tanto apreciava. “Sabe doutor, é a mais pura verdade que eu falo com a brisa e com o Colorado, o passarinho de peito vermelho que pousa sempre no mesmo galho do jacarandá. Mas muito mais do que falo, eu ouço, ouço muito o que eles têm a contar. O Colorado é um pássaro em extinção, sabia? É possível, em meu regresso, que o tenham matado ou o tenham colocado em uma gaiola para exposição e para vender. Na primeira hipótese, será muito triste, mas ao menos o Colorado estava em liberdade com alguma chance de alçar voo e sair com vida. Na gaiola, a morte é certa, em todos os sentidos, simbólico e da vida mesma. Doutor, me desculpa o que vou lhe dizer, mas esses exames todos e esses remédios são minha gaiola. Prefiro, doutor, morrer livre! Quanto à brisa, doutor, ela cruza a vida da gente, não existe alambrado ou lei que proíba a sua passagem. Alguém poderá erguer altos muros para impedir o seu passo, não é? Mas será como se deitar em um ataúde, é a própria morte, sem razão, não é mesmo? Doutor, eu me sinto brisa, nem quero saber de muros em meu redor! Não vou usar os remédios e pode jogar os exames no lixo. No reciclável para que os transformem em coisa melhor!”. Sem alternativa e resignados, os irmãos trouxeram o pai de volta para a casa da colônia. “Ele não tem nenhuma doença, nem o diabo no corpo”, trataram de espalhar por toda a redondeza para acalmar os ânimos e debelar as fofocas prováveis. Alcemar voltou à sua rotina de permanecer um bom tempo do tempo de cada dia a contemplar e, volta e meia, a ouvir e falar com o Colorado, com outros bichos que apareciam e com a brisa. Letícia, sempre que podia, acompanhava o pai. Os dois se deixando envolver pelo mistério da natureza ou por fenômenos que a gente se nega a sentir, ouvir e ver. Não foi para menos, logo correu pelos caminhos e bolichos que o velho, de fato, tinha enlouquecido, enganado os médicos, hipnotizado a família toda e, pior, convencido a filha a participar da loucura. Só podia ser coisa do diabo. Ademais, Alcemar não acreditava em Deus e agora comentam que costuma andar nu e que mostra as partes e a bunda para as crianças e para as moças, numa sem-vergonhice daquelas. Nunca ninguém viu, mas onde há fumaça, há fogo. Não se falava de outra coisa e os temores de que a doidice contaminasse a comunidade, as crianças, começaram a crescer como inço em toda a redondeza. Alguém espalhou que Letícia tinha uma namorada desde quando era jovem. Horror! No jogo de bocha, também se ouviu dizer de que na casa se faziam orgias, incesto e magia negra. Quando um vendaval arrancou parte do telhado da igrejinha e quebrou vidros das janelas do templo, a falação atribuiu às bruxarias do Alcemar. Boatos sempre têm um quê de verdade. O padre e o pastor se uniram contra a ameaça que poderia desvirtuar os fiéis do bom caminho. A eles se juntaram o comissário, o dono do mercadinho e o subprefeito. Alguma coisa tinha que ser feita para evitar uma tragédia sem precedentes na história: satanás tomando conta do corpo das pessoas, as meninas virando sapatonas, os rapazes bichas, todos loucos e sem rumo, de olhos vermelhos e nus. De saída, decidiram matar todos os pássaros, especialmente os de peito vermelho. Os bons de tiro, saíram campo afora e mata adentro caçando todos os passarinhos suspeitos de carregar o diabo entre as penas. Na igrejinha e no templo, orações e mais orações para que nenhum vento chegasse ao povoado trazendo cheiros de enxofre e de ovo podre, como diziam que cheirava a brisa do velho possuído. Ergueram barricadas para impedir que membros da família do demo saíssem de sua casa. Um carro de som estacionou pertinho da cerca de Alcemar e em alto volume, orações e esconjurações ao longo dos dias e das noites. O diabo terá que sair, fugir, escapulir. A família estava em pânico, sem ver uma saída para o que acontecia. Um dos irmãos foi à cerca para mediar a situação, para que retirassem o carro de som e os permitissem mudar para a cidade. Mas ao se aproximar do portão foi recebido a tiros que o fizeram correr de volta à casa apavorado, sem voz e sem entender. Alcemar e Letícia chamaram a família, todos chocados com tudo. “O problema sou eu. Se eu me entregar, em poucos dias, todo esse delírio coletivo estará esquecido. As pessoas ruins ou ignorantes não têm remorso e por isso não reconhecem erros nem pedem perdão. Importante é eu desaparecer e morrer para que vocês possam respirar e viver. Recomeçar. Amanhã isso será feito. Avisem os fanáticos da comunidade, com cautela, de que eu parti”. Colorado não apareceu mais. Alcemar intuiu o destino de seu amigo. Letícia sabia o que havia acontecido e se deixou tomar pela brisa, com os dois açudes cheios. Com o passar das horas da noite e das primeiras horas da manhã, Letícia testemunhou seu pai ir diminuindo de tamanho, viu nascer plumas no seu corpo já pequenino, o bico, o peito vermelho, os primeiros trinados, a mirada e o alçar voo. Do que ela não se deu conta, foi de que seu pai, ao mesmo tempo, testemunhou a filha, pouco a pouco, se transformar em ar, em brisa que afaga os ramos da primavera, o rosto das crianças e dos velhinhos que gostam de contemplar. Ambos partiram em liberdade, sem gaiola e sem alambrado.

 

(*) Conto publicado no livro Metáfora das Flores


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