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O voo do morcego, por Paulo Gaiger (*)

Foto do escritor: Alexandre CostaAlexandre Costa

Num sábado desses de muita chuva, eu estava em casa num esforço inútil para terminar um artigo. O mate, A Paixão Segundo São Mateus tocando baixinho e eu divagando em frente ao computador. Nenhuma ideia. As árias de Bach tentavam me inspirar, a chuva emprestava a solidão propícia. E eu com o pensamento lá longe. Din don, soou a campainha! Será um vizinho? Din don, outra vez. Levantei a contragosto e abri a porta. Um senhor de muita idade e muito alto: “Boa tarde, senhor Paulo!”, disse uma voz com forte acento inglês. “Boa tarde, senhor...”; “Preciso de um chá!”. E foi entrando, carregando uma mala surrada, daquelas de filmes em preto e branco. Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele sentou-se no sofá. “Perdão, mas os quatro andares me mataram. Ufa!”. Pus um louco dentro de casa? Pensei. “Imagino que estejas surpreso com minha visita, nunca nos vimos... ou melhor, em algum momento de sua vida, você me viu!”, e deu um sorriso enigmático. Tentei dizer alguma coisa, mas não me veio nada. “Sabe, essa chuva é inspiradora, dá uma sensação de quietude, o que busco há bastante tempo”. “Vou lhe preparar o chá”, lhe disse. Fui à cozinha para tentar pensar melhor na situação em que me encontrava. Da sala ele falou: “Nem me apresentei. Sou estadunidense, mas moro há muitos anos em um pequeno sítio que comprei no Monte Bonito. Conhece ali?”. “Sim, a colônia, gosto muito!” Trouxe-lhe o chá. Ele pegou a xícara com cuidado. Vi suas mãos grandes e que me pareceram de um boxeador aposentado por invalidez. “Não sei lhe explicar do porquê vim à sua casa. Talvez você me veja como um velho alucinado... Eu carrego um pesadelo e quero alívio e esquecimento antes que as parcas me venham buscar!” Os olhos do estranho visitante encheram-se de água, a chuva caía lá fora, as mãos tremulavam. “Fique tranquilo!”. Secou o rosto com as mangas da jaqueta, colocou a xícara na pequena mesa de centro. Ele tinha um olhar hipnotizante e terno. “Estava muito bom! Olha, o conteúdo desta mala é para ti. Já tenho 98 anos e vivi uma vida agitada e alienada...”. Uma pausa para conter as lágrimas presas aos olhos como uma barragem quase a se romper. Com o seu consentimento silencioso, abri e mala e diante das coisas que vi, fiquei paralisado entre a gargalhada e o espanto. “O que significa isso?”. “Meu rapaz, como podes deduzir... sou Bruce Wayne! É... Em 1939, eu era muito jovem e, por um trauma terrível de infância, quando perdi meus pais em um assalto, comecei a fazer justiça com as próprias mãos. Por ser herdeiro de uma fortuna, pude estudar nos melhores colégios e desenvolver todas as habilidades das lutas e da ginástica olímpica. Virei um super-herói de carne e osso. Não tinha pivete, ladrão e latrocida que me escapasse. Estudei e pratiquei esportes durante anos só para vingar. Ridículo!” O rosto ficou banhado da chuva de seus olhos. “Bob y Bill, dois desenhistas amigos meus, decidiram tratar de meus feitos nos quadrinhos, dando um glamour e exagerando um pouco. Fui o herói do senso comum, atrás de ladrões de galinha. Você já viu pobre declarando guerra? Você conhece alguma multinacional que queira a paz e defenda a natureza? A indústria bélica, as grandes redes de comunicação, as corporações da saúde privada, os bancos, o fanatismo religioso, as empresas poluidoras e as que investem nas guerrilhas da África e sequestram mulheres... Estas são as responsáveis pela injustiça, violência e pobreza no mundo! Minha ignorância me cegou. Combati os bandidos errados. Batman assassinou Bruce Wayne.” Aquele senhor de 1,90m, chorava. O abracei. E assim, adormeceu. Din don, soou a companhia. Acordei num susto. Caramba, que sonho doido! Quando passei pela sala para atender o interfone, quase tropecei em uma mala, dessas antigas de filmes em preto e branco. Uma xícara de chá repousava na mesinha de centro. A chuva cessara. Um rasgo de sol. Um canarinho pousou no beiral da janela.


(*) Publicado no livro “Não vá ao supermercado nos domingos” (ed. Traços&Capturas – 2019)


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