Meu sobrinho chegou da cidade grande para passar uns dias das férias aqui na colônia. Bento, o guaipeca de toda uma vida, o recebeu com pulos de alegria de quase enfartar. Onofre, meu pangaré de toda uma outra vida, o trouxe na garupa da parada de ônibus, que fica lá na frente do bolicho da Dona Marina e de Dom Mauro, até aqui em casa, naquele trotezito sonolento bem do seu jeito de ser. Se tarda e se demora é porque Onofre adora ver a paisagem, charlar com os outros bichos e com as plantas do caminho. Ciência que só os animais e as plantas conhecem. O Garnizé subiu no moirão e não parava de saudar o guri visitante como se fosse as seis da matina. Abri a porteira, demos um abraço de tio avô em sobrinho neto que quase quebro os seus ossos. Grossura e delicadeza às vezes se confundem aqui no campo. A brisa acaricia, mas a tempestade também tem sua boniteza. Quando ele era ainda bebê de colo, tinha ganas de apertar os pesinhos, as bochechas, o corpo todo de fofo que era... e apertava até que a mãe desesperada me alertava: tá demais, o guri parece uma beringela. Cresceu aqui comigo, aprendendo a despertar com os quero-queros, a pegar água no poço, a ordenhar as vacas, a limpar a estrebaria, a regar a horta, a respeitar a natureza, a tomar banho no açude, a protestar contra as queimadas, a bem estudar na escola rural. Quando entrou no ensino médio, se foi para a cidade para morar com a mãe que a essa altura, graças aos médicos, tinha se livrado de uma doença daquelas que por pouco não a levou daqui para lá, sem volta. Depois dos abraços e das boas-vindas do povaréu da casa, sentados na hora do almoço é que reparei nas unhas pintadas do moleque. Olhei de novo e fixei o olhar, meio disfarçando, para me certificar de que o velho aqui, não bastasse já todas a dores nas juntas, estivesse delirando com cores. “Então, vô, gostou das minhas unhas?”; o guri me desconsertou com a pergunta. O danado viu que eu reparava. Fiquei sem jeito. “Ficaram bonitas... é alguma micose, algum tipo de cobreiro de unha que te fez pintar?”. O moleque me olhou com um sorriso para aliviar a angústia do avô que, sem entender nada, cogitava que o guri tinha desviado da rota. Veio até mim, me abraçou e disse que pintava porque sim, porque gostava, achava legal. E que se eu quisesse, poderia experimentar. Afinal, que mal havia nisso? Nenhum. Saímos a cavalgar pela tarde, e eu não conseguia tirar os olhos de suas unhas pintadas, das mãos segurando as rédeas. No jantar, preparei um assado de encher a boca, ainda pensando se não era o meu pensamento que estava curto e errado. E levei um susto. Meu sobrinho adentrou na sala vestindo um vestido, sim, um vestido de mulher, tipo de prenda, sem ser repolhudo. “Que tal, vô?”. Engoli um osso da costela. “Tchê, se é falta de dinheiro, vamos na venda que te compro umas calças, umas bombachas...”. “Não, vô, não precisa. Me sinto bem assim. Esse vestido ganhei da minha namorada. Caiu bem, não?. “Bueno, se a tua namorada acha que estás bem, quem sou eu pra... Vamos, pega um pedaço da costela e una copa de vino”. Nos divertimos muito, conversamos, cantamos... ele toca um violão como ninguém. Os dias passaram correndo e ele regressou para a cidade, deixando boas lembranças de alegria e... lições de ser livre como ele quer ser sem dar satisfação. Matutei sobre os meus jeitos de matutar. No sábado, de manhazinha, fui à venda: “Dona Sílvia, quero um esmalte e um vestido. Um que fique bem assentado em mim”.
(*) Paulo Gaiger é artista professor do Centro de Artes – UFPel
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