O DESATINO DA GUERRA, POR NORA PRADO (*)
- Alexandre Costa
- 25 de fev. de 2022
- 4 min de leitura

Ontem, dia 24 de fevereiro, ficará na minha memória como um dia extremamente feliz e ao mesmo tempo profundamente triste. Essa ambiguidade sentimental se dá porque, nesta quinta-feira, a Rússia invadiu a Ucrânia depois de meses de intensas mobilizações militares e avanços neste sentido, principalmente, nas duas últimas semanas. Com a desculpa, esfarrapada, de apoiar os separatistas russos das cidades fronteiriças de Donetsk e Luhan com a Rússia, Vladimir Putin, deu sinal verde para a invasão do território independente da Ucrânia, cujo presidente legitimamente eleito, os invasores pretendem depor para se apropriar, novamente, do antigo território que pertenceu a antiga União Soviética. Era para ser um dia feliz, pois eu me preparava para entrevistar a artista visual Clara Pechanky, desenhista, gravadora e pintora, cuja obra é uma das mais belas e potentes das artes visuais brasileiras. Minha convidada, de número 50, simbolicamente, representava a pujança e graça da arte como transcendência, resistência e superação diante da realidade cotidiana e, ao mesmo tempo, indicava que o meu programa de entrevistas, Estação Prata da Casa, com um ano de vida, tem fôlego e estofo para seguir em frente por muito mais.
Não bastasse o meu coração em festa e, ao mesmo tempo, nublado pela deflagração da guerra na Europa, minha convidada lembrou de que é filha de pais, avós e bisavós judeus ucranianos que vieram para o Brasil em busca de paz e de melhores condições de vida para a família. Ou seja, para ela, que tem laços familiares profundos com esse país, a guerra tinha um significado ainda mais triste e desolador. Evidente que não nos aprofundamos nesse tema, embora ele estivesse latente ao longo de toda entrevista, uma vez que Clara tem, na figura dos generais, essa crítica explícita e implícita na sua obra como um personagem bizarro, ultrapassado, horrendo e decadente. Através deste personagem ela pode extravasar a sua aversão e resistência contra os abusos de poder praticado pelos militares durante a ditadura militar brasileira ao longo de 20 anos.
Essa contradição emocional se aprofundou quando assisti ao noticiário noturno, e vi em choque as famílias deixando Kiev e cidades Ucranianas em direção ao interior ou à fronteira com a Polônia. As filas gigantescas para abastecer automóveis, comprar alimentos nos supermercados ou retirar dinheiro nos caixas eletrônicos, davam a dimensão excepcional vivida pelos ucranianos. Mas o limite estremo dessa barbárie acuando o povo assustado, em busca por segurança e salvação, dirigindo-se aos milhares para as estações de metrô, foi vê-los amontoadas com suas famílias, amigos ou parentes e seus poucos pertences sentados ou deitados no chão frio das estações. Além disso, aglomerados em plena pandemia de covid 19 com risco de altos índices de contaminação e adoecimento. Uma crueldade absurda e revoltante.

Enquanto isso, meu marido e um ajudante, tapavam os buracos dos pregos depois que retiramos todos os quadros das paredes para a casa nova. Sim, enquanto milhões, lá na Ucrânia, perdiam suas casas por bombardeios e mísseis, fugindo apenas com a roupa do corpo e pouca bagagem de mão, eu organizava uma mudança da casa alugada para o nosso futuro lar na casa, recém comprada, numa rua tranquila no bairro de Ipanema. Situada há uma quadra da praia, do imponente e belo rio guaíba, e cercada por árvores frutíferas num lindo e agradável jardim.
Enquanto milhares não podiam dormir com o barulho ensurdecedor e apavorante dos mísseis, das explosões e fogo provocado pelas bombas, eu podia sentir a brisa do vento e olhar para as estrelas no céu. Como pode tanta desigualdade? Meu Deus, como é possível que uma guerra esteja acontecendo, agora, enquanto redijo esta crônica semanal? Como é possível que uma guerra ainda exista em pleno início do século XXI? Quanta hipocrisia por parte dos governantes, especialmente, de Vladimir Putin. Quanta ineficiência da ONU, da União Europeia, da diplomacia internacional, do povo russo que não pode se manifestar contra o seu ditador que está aboletado há 33 anos no poder? Quanta decadência moral da nossa, suposta, civilização incapaz de conter uma guerra destas proporções e neste nível desproporcional de forças.
Enfim, estou em choque, estou partida ao meio. Feliz com a casa nova e as perspectivas para uma vida melhor e mais confortável com a minha família, num lugar lindo e ensolarado e, triste e perplexa com esta guerra insana e sem sentido, a não ser os econômicos que estão na raiz do desejo dos fascistas de plantão. Enquanto isso, no Brasil, o Itamarati segue em alas, tentando apagar o fogo que o presidente Bolsonaro provocou ao se solidarizar com Vladimir Putin no conflito com a Ucrânia.
Temos e teremos que ter muita fibra e inteligência emocional para suportar os últimos meses com este facínora no poder. Até lá, espero, sinceramente, que o Brasil e o mundo encontrem uma saída para parar o desvario de Putin nessa guerra insana e absurda. Não sou nenhuma especialista em política, muito menos em política internacional, mas posso perceber claramente que numa guerra a população civil perde sempre. Os ecos da segunda grande guerra e a do Vietnã ainda reverberam na minha mente e no meu coração, embora eu não fosse, sequer, nascida na primeira e ainda fosse uma criança na segunda. Infelizmente é preciso relembrar do trauma da guerra e do fanatismo que a sustenta para que não caiamos nas armadilhas da prepotência e da força bruta. Para que, de algum modo, aprendamos com o passado recente da nossa torpe e desumana humanidade que a força bruta não compensa.
O velho e tão certeiro slogan repetido e veiculado milhões de vezes desde os hippies, John Lennon e toda a geração da contracultura nunca foi tão atual quanto agora: “FAÇA AMOR, NÃO FAÇA GUERRA!”
Porto Alegre, 25 de fevereiro de 2022.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.