A primeira das quatro matérias da série "DA DEMOCRACIA EM VERTIGEM AO FASCISMO GENOCIDA" utiliza as palavras proferidas pelo ministro da Suprema Corte Gilmar Mendes, no dia 23 de março, como ponto de partida para a retomada de uma discussão que estava adormecida: o impeachment da ex-presidenta Dilma foi legal ou foi um golpe, como tantas vezes denunciaram os líderes e militantes do Partido dos Trabalhadores (PT)? Naquela sessão histórica do STF, Gilmar Mendes afirmou, em alto e bom tom, que Lula foi vítima de uma trama. O objetivo do magistrado nunca foi defender Lula, o PT ou Dilma. Ao mirar em Sergio Moro e na Lava Jato, Gilmar Mendes acabou confirmando o que muitos já sabiam, outros tantos até suspeitavam, mas a grande maioria sequer imaginava: a democracia foi vítima de um golpe.
GOLPE CONTRA DILMA, PRISÃO DE LULA E SUSPEIÇÃO DE MORO REVELAM QUE BRASIL FOI VÍTIMA DE UMA CONSPIRAÇÃO
O julgamento sobre a suspeição do ex-juiz Sergio Moro, em sessão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), realizada na terça-feira (23/3), é um dos fatos mais importantes da história recente do Brasil. Além de colocar em xeque a legitimidade da Operação Lava Jato e balançar as estruturas jurídicas do país, a suspeição do ex-juiz foi responsável por reacender a discussão sobre a tese de que o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff faz parte, na verdade, de uma conspiração que colocou a democracia brasileira em vertigem.
As palavras proferidas pelo ministro da Suprema Corte Gilmar Mendes, ao rebater o voto de seu colega Kássio Nunes Marques, (contrário à suspeição de Moro) na histórica sessão que declarou Moro parcial, comprovam a existência de uma trama tantas vezes apontada por militantes, dirigentes e políticos do PT. A parcialidade de Moro nos processos contra Luiz Inácio da Silva foi denunciada pelos advogados do ex-presidente em todas as instâncias cabíveis e por diversas vezes. A via sacra percorrida pela defesa de Lula, para tentar reverter a soma de decisões que contrariam a própria lógica do mundo do direito, foi muito bem definida pelo ministro Gilmar Mendes: “o maior escândalo jurídico da história. No total, foram protocolados pedidos em quatro ações distintas no Supremo para questionar a atuação do juiz Sérgio Moro, além de outras seis para a própria Justiça Federal, para o Tribunal Regional Federal da 4ª Região e até para a Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).
De acordo com próprio ministro do STF Gilmar Mendes, "a Operação Lava Jato apoiou a eleição de Jair Bolsonaro, tentou interferir no resultado eleitoral e agiu para perturbar o país durante a gestão de Michel Temer", disparou o magistrado, afirmando ainda que a Lava Jato tinha candidato e tinha programa no processo eleitoral. "Primeiro a Lava Jato atua na prisão do Lula. Prestes à eleição, a Lava Jato divulga o chamado depoimento ou delação do Palocci, tentando influenciar o processo eleitoral. Depois, o Moro vai para o governo Bolsonaro, portanto eles não só apoiaram como depois passam a integrar o governo Bolsonaro", explicou o ministro.
As afirmações do ministro da Suprema Corte atingiram em cheio a credibilidade do Judiciário e da imprensa, colocando em dúvida a isenção e a imparcialidade de ambos. O magistrado já havia feito as acusações durante entrevista à BBC News Brasil, no dia 16 de fevereiro deste ano, mas as suas palavras não tiveram o mesmo impacto e a mesma repercussão.
As revelações de Gilmar Mendes sobre a atuação da chamada grande mídia, referindo-se ao suporte de jornalistas, que segundo o próprio ministro se portavam como assessores de imprensa da força tarefa de Curitiba, são a ponta de um iceberg de um tema bem antigo. As acusações contra o ex-presidente Lula eram intensas e sistemáticas e tomaram conta dos noticiários. O resultado deste trabalho contínuo gerou uma imagem extremamente negativa do ex-presidente, tornando praticamente sem efeito os alertas de que Lula vinha sendo vítima de uma armação política. Soma-se a isso, o fato dos formadores de opinião alegarem que a defesa de Luiz Inácio tentava criar uma espécie de teoria da conspiração, fantasiosa e absurda, para inocentá-lo.
Seja como for, a comprovada parcialidade de Moro e o vazamento de áudios obtidos pelo hacker Walter Delgatti Neto (publicados pelo Intercept) demonstram que a grande imprensa foi realmente um importante pilar do golpe que destituiu Dilma. As ironias tantas vezes presentes nos argumentos dos comentaristas políticos das grandes emissoras revelam bem mais que omissão e conivência. A atuação coorporativa e parcial do conglomerado da imprensa nacional tornou o jornalismo cego e incapaz de estabelecer nexo entre os inúmeros fatos gerados. Neste intervalo de tempo, entre a farsa do impeachment e o terrível março de 2021, o país ultrapassou a terrível marca de 300 mil mortos pela covid-19.
GRAVES ACUSAÇÕES
As considerações de Gilmar Mendes sobre a atuação da imprensa brasileira são extremante graves, mas não são novidade. Dois dias após deixar a Presidência da República, no dia 2 de setembro de 2016, Dilma Rousseff fez duras críticas à mídia nacional, durante uma coletiva de imprensa. “Se o meu afastamento servir para algo, deve servir para que nós façamos a partir de agora uma análise muito séria sobre as consequências de termos apenas quatro grupos de mídia controlando toda a comunicação do Brasil. E fazer uma reflexão muito séria sobre as versões e sobre a indução a certos tipos de posições”, pontuou. “Há uso de alguns grupos econômicos de sua versão como sendo a verdade. Desde que fui afastada fui expelida de alguns meios de comunicação. E quem permitiu que o Brasil tomasse conhecimento do que se passava aqui, principalmente por meio das redes sociais, foi a repercussão da imprensa internacional”, disparou Dilma.
RELEMBRANDO O GOLPE
Em um artigo publicado no jornal Brasil de Fato, no dia 17 de abril de 2019, exatamente três anos após o golpe, a ex-presidenta Dilma Rousseff apontou algumas consequências do impeachment para o país. “O golpe resultou numa calamidade econômica e social sem precedentes para o Brasil e, em seguida, na eleição de Bolsonaro. Direitos históricos do povo estão sendo aniquilados. Avanços civilizatórios alcançados no período democrático que sucedeu à ditadura militar vão sendo dilapidados. Conquistas fundamentais obtidas nos governos do PT passaram a ser revogadas. Este processo radicalizou-se com um governo agressivamente neoliberal na economia e perversamente ultraconservador nos costumes. Um governo com uma inequívoca índole neofascista”, escreveu a ex-presidenta.
Na época, a grande mídia repetia à exaustão que o Brasil estava quebrado, argumento que servia também de apoio ao governo de Bolsonaro e que foi usado como fundamento para o golpe. “Esta falsificação dos fatos continua sendo brandida pela mídia e usada maliciosamente para justificar a recuperação que nunca veio e os empregos que não voltaram. Nem vão vir, enquanto durar a agenda neoliberal. A verdade é que o Brasil nunca esteve sequer perto de quebrar, durante o meu governo”, ressaltou Dilma.
A ex-presidenta relembrou ainda que seu governo foi vítima de uma sistemática sabotagem, que segundo ela foi determinante para o rompimento da normalidade institucional. “Foi iniciada com pedidos de recontagem de votos, dias após a eleição de 2014, e com um pedido de impeachment, já em março, com apenas três meses de governo. A construção do golpe se deu no Congresso, na mídia, em segmentos do Judiciário e no mercado financeiro. Compartilhavam os interesses dos derrotados nas urnas e agiam em sincronia para inviabilizar o governo”, escreveu Dilma, afirmando que o principal objetivo do golpe foi o enquadramento do Brasil na agenda neoliberal, que, por quatro eleições presidenciais consecutivas havia sido derrotada nas urnas.
Dilma faz críticas severas ao fato dos seus adversários tratarem o dia 17 de abril como uma data comemorativa. Para a ex-presidenta, a data deveria ser lembrada como o dia da infâmia. “Foi quando o desastre se desencadeou; se desencadeou ao barrar os projetos dos governos do PT que tinham elevado dezenas de milhões de pessoas pobres à condição de cidadãos, com direitos e com acesso a serviços públicos, ao trabalho formal, à renda, à educação para os filhos, a médico, casa própria e remédios. Interromperam programas estratégicos para a defesa da soberania e para o desenvolvimento nacional, projetos que colocaram o Brasil entre as seis nações mais ricas do mundo e retiraram o país do vergonhoso mapa da fome da ONU”, disparou Dilma.
REPERCUSSÃO INTERNACIONAL
O Observatório Político da América Latina e do Caribe (OPALC), ligado ao Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), em seu relatório anual, publicado em janeiro de 2017, classificou o afastamento de Dilma Rousseff como “uma grave deterioração da democracia brasileira”. Enquanto no Brasil a grande imprensa assumiu uma posição favorável ao impeachment de Dilma, a mídia internacional tratou o caso, de forma majoritária, como um golpe parlamentar para tirar do poder uma presidenta democraticamente eleita. Um mês após a votação do impeachment na Câmara de Deputados, o linguista norte-americano e professor emérito do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) Noam Chomsky afirmou, em entrevista ao site norte-americano Democracy Now!, publicada em maio de 2016, que “uma gangue de ladrões” estava tentando destituir a presidenta do Brasil, orquestrando “um golpe brando” no país.
“Na verdade, temos a única líder política (Dilma) que não roubou para enriquecer e está sendo impedida por uma gangue de ladrões, que fizeram isso. Isso conta como um golpe brando”, disse Chomsky ao ser perguntado sobre se o que está ocorrendo na política brasileira pode ser classificado como “golpe de Estado”.
O professor emérito do MIT afirmou na época que nos últimos dez ou 15 anos, a América Latina “se libertou” do domínio estrangeiro, referindo-se às relações comerciais e à dependência em relação aos Estados Unidos. “É um desenvolvimento dramático nas relações mundiais, é a primeira vez em 500 anos”, ressaltou Chomsky, lembrando que no passado, os Estados Unidos interferiu na política na América Latina e que recentemente havia tentado derrubar governos na Venezuela em 2002, no Haiti em 2004, em Honduras em 2009 e no Paraguai em 2012.
Noam Chomsky, criticou os adversários de Dilma no Congresso. Pela primeira vez, no entanto, aquela sessão de votação permitiu à maioria da população brasileira, que assistia pela televisão aberta, conhecer o nível dos seus parlamentares. Quase nenhum, ao justificar seu voto pelo impeachment, citou o suposto crime de responsabilidade cometido por Dilma.
A maioria resolveu homenagear filhos, esposas, maridos, Deus e até figuras da ditadura militar. Chomsky se referia ao então deputado pelo PSC do Rio de Janeiro e hoje presidente da República Jair Bolsonaro, que homenageou o torturador e coronel do Exército brasileiro Carlos Alberto Brilhante Ustra, que coordenou um dos órgãos de repressão da ditadura militar e foi responsável pela tortura e morte de centenas de militantes políticos contrários ao regime autoritário que governou o Brasil por 21 anos.
CONTRADIÇÕES
A maior contradição do golpe contra Dilma foi a constatação de que dos 367 deputados que votaram a favor do prosseguimento do impeachment, 119 respondiam por crimes na Justiça comum ou eleitoral ou estavam envolvidos em suspeitas. Um dos argumentos para destituir Dilma era o fraco desempenho da economia do país. Vendido como a tábua de salvação do Brasil, o impeachment de Dilma, que na época tinha apenas 10% de aprovação popular, não tirou o Brasil da crise econômica e Michel Temer, que assumiu o governo sem ser eleito para o cargo de presidente, passou a ostentar níveis de aprovação piores do que o de Dilma, conforme pesquisa Vox Populi/CUT, na época, indicando que apenas 5% da população apoiava o seu governo.
Quatro anos e meio após o golpe, os indicadores relativos a diversas áreas pioraram, como veremos mais adiante, revelando que o impeachment empurrou o Brasil para o fundo do poço. Além das mais de 310 mil mortes em função da pandemia de coronavírus, a realidade do país é dramática: estagnação da economia, crescimento do desemprego e uma visível instabilidade política.
Комментарии