![](https://static.wixstatic.com/media/099714_8bf75d8c777b4c38a98c3b47907f60fb~mv2.jpg/v1/fill/w_802,h_518,al_c,q_85,enc_auto/099714_8bf75d8c777b4c38a98c3b47907f60fb~mv2.jpg)
Viajar é sempre bom. Há quem também viaje através dos livros, como eu, do cinema, da pintura, da música, do pensamento que a gente voa. Viajar em bike, carro, ônibus ou trem, cada uma tem um tipo de escrita, de atmosfera, de paisagens percebidas. Já de avião, é tudo mais intenso em distâncias, tempo de despedidas e sensações sobre nuvens e simulacro de chão entre departure e arrivel. Quando é preciso cruzar o grande charco, três ou quatro filmes para não pensar na delicadeza e violência do ar, até o sono vencer o desconforto da poltrona. Bem antes da viagem, é preciso providenciar a documentação e a mala de garupa: passaporte, seguro-viagem, visto, quando necessário, euros ou dólares, cartão internacional, hospedagem, aluguel de carro, roteiros, guia de metrôs e trens, quando for Europa, contatos dos consulados e das embaixadas, nécessaire com remédios básicos, um livro para ler durante o voo, notebook, peito aberto, boa educação e mais algumas coisinhas que a gente quase ia esquecendo. A mala com as roupas é um trabalho de montagem, um cubo inteligente, muitas vezes: em uma mala, uma vida inteira a ser vivida, não importa se ao longo de um mês ou de dois anos. Pronto, e pesando menos de 23 quilos. Show! Tudo revisado mil vezes. Agora é rumar para o aeroporto! Cerca de quarenta pessoas cercavam Adriana, chamada carinhosamente de Nica. Amigos, amigas, amigues, parentes, todos, todas e todes lotavam o saguão trocando abraços e beijos, frases que antecipavam as saudades. O saguão transbordava carinho e amizade, lágrimas corriam pelos olhos de toda esta multidão sensibilizada com a despedida. Atravessar o oceano e ficar dois anos fora não é coisa para fracos. Nica não sabia como se conter. Emocionada, dois olhos vermelhos como duas cubas cheias d’água, gaguejava, mal conseguia dizer palavra. O coração em taquicardia. O namorado de agora, a namorada de antes, o namoradinho da infância... tudo já era nostalgia. Viver só, longe dos afagos, das palavras de amor, das mãos dadas, do cinema e da pipoca, dos olhares, da pele com pele, da língua e da saliva gostosa de se lambuzar. Tudo mexia com Nica. A avó estava ali, no meio do povo, com aquele sorriso único e sedutor de toda a vez que lhe trazia uma torta de maçãs. Ah, vó. Nica a abraçou, sentindo os seus perfumes e lembrando das duas à mesa saboreando a melhor torta de maçãs do mundo. Rosaninha, a irmãzinha menor, abraçou suas pernas.
- Nica, Nica, e lhe deu um desenho, guarda contigo, pra não esquecer de mim.
Nica não se aguentou. Duas cachoeiras desceram de seus olhos, abaixou-se e abraçou queridamente a caçula. As limpadoras do aeroporto, tão bem acostumadas às despedidas de viajantes, nunca tinham visto nada igual. Roda de abraços, promessas de telefonemas e mensagens diárias, desejos de saúde e alegria, observações para ter cuidado e cautela, tantas lágrimas que as limpadoras, Miriam e Simone, ficaram de vigília para secar o piso do saguão. Muitas fotos, beijos e mais fotos. Nica era tão querida que até Bartira, a ex-namorada, lhe pediu um beijo dos tempos de namoro. Aplausos e gritos no aeroporto. A mãe de Nica não se continha. Era consolada pelo pai. - São só dois anos, Suzana. Passam voando.
Inês, a agente de viagens e amiga da família, avisou com voz carinhosa:
- Em dez minutos, o embarque. Aproveitem para as últimas despedidas.
Arrepios, alegria e ansiedade.
- A Nica, disse o pai com voz projetada para que todo o saguão ouvisse, sempre foi uma filha, uma mulher motivo de orgulho e alegria para mim e para a Suzana. Quero que ela saiba disso, que ela tem um lugar permanente em nossas vidas, em nosso coração e que sempre poderá contar com o nosso apoio. É claro, já pode se vivar sozinha. Te amamos, Nica.
Suzana caminhou até a filha e lhe abraçou demoradamente, logo foi o pai, depois a caçula, depois o namorado, a ex, a avó, e assim um grande círculo se formou em torno de Nica, uma sinergia jamais vista. Até as limpadoras emocionadas se juntaram ao grupo. A voz nas caixas de som do aeroporto chamou para o embarque. Não tinha mais volta. Era atravessar o oceano e começar vida nova por longos ou curtos dois anos. Agora a serenidade tomou conta porque já não tinha mais nada a ser feito. As despedidas já estavam no passado recente e era preciso resignação. Inevitavelmente, uma viagem separa amigos, amantes, parentes por um tempo. Mas logo mais haverá um recomeço, uma reconciliação, uma nova história. Uma ruptura da solidão. Uma nova vida desponta em seus mistérios, outros olhares, abraços, vozes, corpos, cumplicidades. É bela e grandiosa. Pela grande janela do aeroporto deu para vislumbrar a partida do avião. Agora Nica caminhava sozinha pelo saguão. De volta para o seu apartamento torcendo para que a viagem de seus amigos e de sua família ocorresse da melhor maneira possível. Um sorriso e uma pequena lágrima escorregaram pelo seu rosto. Em dois anos, retornariam com saúde e alegria.
Paulo Gaiger é artista, cronista, professor da UFPel e autor de A METÁFORA DAS FLORES - (Ed.Viseu).