por Alexandre Costa (*)
A ditadura militar deixou muitas cicatrizes e ainda hoje existem feridas que permanecem abertas. O artigo do Ubiratan de Souza, publicado pelo www.esquinademocratica.com, nos possibilita enxergar aquele Brasil autoritário que silenciou, matou, torturou e afastou a democracia dos horizontes do país por mais de 20 anos. Meio século após o voo da liberdade, nos deparamos novamente com a ameaça de sucumbirmos aos horrores dos anos de chumbo.
No seu artigo, Ubiratan, o “Bira”, trouxe à memória do país o ímpeto de uma geração que lutou, literalmente, para devolver a democracia à nação. O voo da liberdade, descrito por Gregório, nome de guerra do Bira, devolveu a vida aos 70 prisioneiros (as) políticos (as) que estavam nos centros de tortura e foram trocados pelo embaixador suíço. Aquela madrugada de 13 para 14 de janeiro de1971, em que o avião partiu da Base Aérea do Galeão no Rio de Janeiro rumo a Santiago do Chile, foi uma das vitórias contra a ditadura assassina que roubou duas décadas de soberania dos povos da América Latina.
O diplomata havia sido capturado por um comando guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária – VPR, no dia 7 de dezembro de 1970, como narrou o jovem Ubiratan de Souza, na época com apenas 22 anos. Gregório buscou no baú da história aquele Brasil amordaçado, oprimido, coagido e pisoteado pelos coturnos. Um país triste que engolia o seu próprio silêncio, soterrando os gritos de dor que emanavam das sessões de tortura.
Ubiratan de Souza é muito amigo do meu pai, Bruno Mendonça Costa, médico, militante do PCdoB, preso em função da sua militância política e hoje com 83 anos Dia destes, encontrei o Bira e ele me contou que havia ficado na minha casa, escondido, sem sair do quarto, pois estava sendo procurado pelos agentes da repressão. Bira foi preso na guerrilha urbana, em São Paulo, mais ou menos um ano depois de sair daquele apartamento na Rua 20 de setembro, que guarda muitas histórias e onde passei minha infância.
Meu pai também precisou se esconder, após o golpe de 1964. Ficou um mês no apartamento de uma amiga, também sem sair do quarto, temendo ser preso pelos órgãos de repressão. Para evitar a prisão, resolveu exercer sua profissão nas pequenas cidades de Constantina, Ernestina e Campina das Missões. Retornou a Porto Alegre em 1966. Em maio de de 1971 foi preso. No DOPS conheceu os métodos de confissão aplicados pelo delegado Pedro Seelig e pelo inspetor Nilo Hervelha. Como se negava a falar, colocaram-no, então, num avião da FAB, com destino a São Paulo. Na OBAN também foi barbaramente torturado, inclusive com sessões comandadas pelo próprio Coronel Brilhante Ustra. Um dos seus orgulhos é jamais ter mencionado nomes e de ter negado todas as acusações sobre sua atuação política.
Minha mãe, Eunice Costa, suportou a pressão dos órgãos de repressão, com muita coragem. Tão logo soube da possibilidade do Bruno estar em São Paulo, pegou um avião e levou junto a minha irmã, que na época tinha apenas 7 anos de idade. As duas faziam plantão em frente à OBAN, na tentativa de ao menos ver o meu pai. Não tivesse ela mobilizado pessoas, instituições e órgãos de classe, que denunciaram a prisão do meu pai, talvez ele não estivesse saído de lá vivo.
Depois de sair da prisão, meu pai conta que a violência continuou. Viveu um longo período asfixiado financeiramente, pois perdeu seus empregos no INSS e no INAMPS (o SUS de hoje), conquistados em concurso público. Preferiu não se exilar, correndo risco de ser novamente preso ou de ser raptado e morto.
O texto do Bira me trouxe um desconforto no peito, como se estivesse resgatado em mim todos aqueles sentimentos que acompanharam a vida da minha família. Lembro de ter ficado com minha avó, por questões de segurança, e da saudade que sentia dos meus pais e da minha irmã. É como se estivesse respirando o mesmo “ar pesado” de 50 anos atrás e como se sentisse aquele mesmo medo, que era constante e presente. O voo da liberdade me fez lembrar dos piores dias da minha infância e dos piores anos das nossas vidas.
O artigo do Bira nos trouxe muito mais do que as lembranças da luta contra a ditadura militar. O voo da liberdade nos coloca diante da ameaça de vivermos novamente os horrores daqueles anos de chumbo, de arbitrariedades, autoritarismo, coerção, violação de direitos e assassinatos.
A ditadura militar subtraiu sonhos e multiplicou os medos. Ainda hoje temos muito a agradecer aos que ousaram lutar durantes aqueles tristes anos em que a democracia era uma utopia para o Brasil.
(*) Alexandre Costa é jornalista.