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"MÁQUINAS, MÁQUINAS!", ARTIGO DE SAMUEL KILSZTAJN APONTA PARA EVIDÊNCIAS DO EMBURRECIMENTO HUMANO CAUSADO PELO USO DE IA

O artigo de Samuel Kilsztajn, publicado no Le Mond Diplomatique Brasil, no dia 26 de maio, é didático em relação ao alerta em relação às "inteligências artificiais". Aos poucos, estamos despertando para os riscos contidos no mundo cibernético, na avalanche de novidades possíveis, a partir das novas tecnologias, e dos danos causados à humanidade. As consequências podem ser devastadoras, tanto do ponto de vista do comportamento individual quanto coletivo, em termos de dominação Hoje precisei assistir na internet à entrevista que dei em 2018 em minha língua materna, o moribundo yiddish. Fiquei surpreso porque o computador me informou (talvez fosse o site, nunca sei quem está falando comigo, o computador, o Windows, a Microsoft, o Google, o site etc.) que ele precisava verificar se eu era mesmo humano (na minha ignorância, para quê?).


Pensei comigo mesmo, olha só quem está falando! Passado algum tempo, o computador, depois de realizada a verificação, creio eu, voltou, desta vez, para indagar, a mim, se eu era humano. Não achava que estaria vivo para ver uma máquina mandar eu provar para ela que eu era gente. Obediente, respondi que sim. Até pensei em perguntar se ela era uma máquina, mas deixei por isso mesmo. Enfim, funcionou… Mesmo assim, me senti humilhado, intimidado. Toda vez que consigo falar com alguém, isto é, com um ser humano (até prova em contrário), pouco me adianta também, porque geralmente o autômato me informa que não pode fazer nada por mim, o sistema é que dá as cartas. 


Em uma ocasião, Lucia Santaella me disse que os países desenvolvidos haviam passado da comunicação oral para a escrita e da escrita para a comunicação de massas; enquanto nós, os brasileiros, passamos diretamente da comunicação oral para a comunicação de massas (pelo menos foi assim que eu entendi o que a Lucia falou, nós aqui contando causos, de cócoras, pitando um cigarrinho de palha, com celular em punho). Um amigo cibernético me contou que estava redigindo uma dissertação com o título Analfabetismo virtual – a popularidade do WhatsApp áudio em relação ao texto deve-se aos inúmeros erros ortográficos, gramaticais e de sintaxe que dariam muito trabalho para o usuário corrigir, mesmo com o auxílio de inteligência artificial (e a empresa, atenta, já introduziu a transcrição automática de áudios para textos).


Achei tudo isso muito interessante – lembrei que as inscrições em sumério, expostas no Museu Arqueológico de Istambul, foram gravadas há quatro mil anos e que a educação pública, instituída no século XVIII, na Prússia, democratizou a escrita e popularizou a literatura, até então reservadas às elites e ao clero. Lembrei também que na Europa e nos Estados Unidos as pessoas carregam livros para baixo e para cima, leem no metrô etc. A tiragem da revista semanal The Saturday Evening Post nos Estados Unidos nos anos 1920 era maior que a da revista Veja no Brasil de hoje. O Post publicava Agatha Christie, Dorothy Parker, Edgar Allan Poe, Francis Scott Fitzgerald, William Faulkner, entre outros. E, já que estamos falando de máquinas, Dorothy Parker declarou: “Sei tão pouco sobre máquinas de escrever que certa vez comprei uma nova porque não conseguia trocar a fita da que eu tinha.” 


Durante a pandemia do coronavírus, costumaz viajante, impossibilitado de sair de casa, escrevi dois livros de viagens, Rodando o mundo em palavras e Partir c’est garder son équilibre. Neste segundo, escrevi um capítulo, “Orbit City”, em que falo da modernidade. Na pandemia, com o perdão da palavra, fomos todos jogados direta e literalmente para o futuro com um pé na bunda. 


Eu nunca tive TV, nem celular, para surpresa de todos os que me cercam (e algumas vezes irritação). Meus três filhos pequenos viviam mencionando iPhone, iPad, Android, celular, smartphone, tablet etc., e eu nunca sabia o que eles estavam querendo dizer. Um dia, numa viagem de trem que iria durar uma hora, eu disse para eles, “agora sim vocês vão ter uma hora inteirinha para me explicar a diferença entre cada uma dessas mídias” (nem sei se é assim que devo me referir a essas coisas). Pois bem, todos toparam e, assim que um deles começou a definir as características do iPhone, os outros dois disseram, “não é nada disso”. Então, eu tive que interromper a conversa e dizer para eles estudarem o assunto e se reunirem antes sozinhos para acertar as arestas, entrar em consenso e, num segundo momento, se reunirem comigo para tentar me explicar a diferença entre essas mídias. Não preciso dizer que a tal da reunião comigo, até a presente data, nunca aconteceu. 


Recebi um recado da Microsoft dizendo que o Office (do meu filho professor da rede pública estadual), que eu estava usando, iria ser suspenso (porque meu filho havia trocado de emprego). Meus amigos cibernéticos me aconselharam a usar o LibreOffice. Comecei a usá-lo, mas todos os livros que havia escrito em Word do Office desconfiguravam levemente (e eu não conseguia saber exatamente onde é que desconfiguravam). Então resolvi pôr a mão no bolso e comprar um Office da Microsoft. Tinha duas opções pelo mesmo preço, uma com validade por um ano e outra com validade para a vida, mas sem atualizações. Ganhei na loteria, comprei o eterno, porque detesto atualizações. Assim que consigo me acostumar com uma nova versão, para o “meu conforto”, sai outra de ponta e eu me perco na primeira esquina. 


Vejo adultos se debatendo com o uso do celular e eles me dizem que não sabem usá-lo muito bem porque acabaram de ganhá-lo de presente do filho adulto jovem (que comprou para si um de última geração). Assim que os pais estiverem craques no uso deste “novo” celular, o filho provavelmente vai comprar o último lançamento e doar o velho celular para os pais, que vão ter que começar tudo de novo, aprender a mexer no “novo” celular… e assim caminha a humanidade. 


Não domino a linguagem cibernética, embora tenha sido precursor no uso dos PC, em 1985, e tenha trabalhado com programas de estatística avançada e até de sofisticado geoprocessamento. Quando preciso, meus filhos e amigos cibernéticos, que se dispõem a me ajudar, acabam perdendo a paciência, levantam a voz e ralham comigo quando digo que não estou entendendo o que eles estão falando, “entende sim, você não está querendo é ouvir!” e me deixam na mão. Para mim, é como se estivessem falando grego (entendo grego melhor do que cibernética). O que significa “internet morta”, bots e prompts?  


Quando procuro ajuda pela internet, sigo as instruções, mas nunca acho na tela o termo utilizado nas instruções. Chamo a minha filha e ela me diz, “tá aí, pai!” pois ela conhece um termo que é “sinônimo” do que deveria estar lá e não está. Depois ela pede para eu clicar o mouse em cima daquele símbolo, no meio de dúzias de símbolos, “aquele ali, pai!”, e fica nervosa porque ela conhece o símbolo e sabe onde ele está, mas não sabe explicar, e eu não conheço o símbolo, nem sei onde ele está, e fico perdido entre as dúzias de símbolos dispostos na tela. 


A distância entre meu filho mais velho e o mais novo é de 28 anos. Isto quer dizer que cuidei de filhos menores por 45 anos (28+17), de 1976 a 2021, dos meus 25 aos 70 anos de idade, ou seja, a maior parte da minha vida. Todos eles foram criados assistindo The Terminator com Arnold Schwarzenegger, originalmente lançado em 1984. Preparei todos os quatro para a guerra contra as máquinas. Mas, como todos vocês já sabem, meu tiro minguou, porque as máquinas usaram outra estratégia para nos dominar. 


Diferentemente de humanoides e máquinas-mecânicas-gigantes, estamos sendo dominados por mecanismos que mais se assemelham às técnicas descritas em 1984 de George Orwell. Máquinas que, de forma sub-reptícia, nos encantam e nos fisgam, facilitam o nosso trabalho e nos tornam mais produtivos (e apáticos). Ao que tudo indica, os usuários tendem a emburrecer conforme aumenta o uso da inteligência artificial. Em 1970, quando ingressei na faculdade, achávamos que o progresso e o aumento da produtividade iriam nos livrar de horas de trabalho alienante e aumentar as nossas horas dedicadas à cultura e ao lazer. Mas, ao que parece, estamos trabalhando mais e de forma cada vez mais intelectualmente insana e estressante, ao mesmo tempo em que as condições de trabalho e os direitos trabalhistas se precarizam. O brasileiro Thiago Zygband, atualmente sediado em Shang Hai, especialista em marketing digital, discorre sobre a podridão cerebral a que está sujeito. 


A comunicação virtual é mediada por coisas, amplifica e prescinde da comunicação presencial. Até o século XIX, a comunicação virtual restringia-se ao desenho e à escrita. A partir do século XIX, a comunicação virtual ganhou ímpeto com o surgimento do telégrafo (1792), fotografia (1826), telefone (1876), reprodução sonora (1877), cinema (1895), rádio (1896), televisão (1926), computador (1946), internet (1969) e celular (1973). E foi assim que a comunicação virtual, até então restrita ao desenho e à escrita, ganhou a dimensão de comunicação de massas. 


Vilém Flusser, em 1988, trinta e sete anos atrás, já nos alertava sobre os limites do pensamento e da comunicação desenvolvidos a partir das civilizações grega e judaica. De acordo com Flusser, poderíamos falar em um pensamento pré-histórico, anterior à escrita; um pensamento histórico unidimensional, que privilegia o alfabeto e a escrita, em detrimento das imagens; e um novo tipo de pensamento pós-histórico, estrutural, baseado em imagens sintéticas. 


Antes do dilúvio, arranjei uma pretendente insistente que deixou o seguinte recado na minha secretária eletrônica, “máquina, máquina, só você que me entende, diga ao Samuel que ele está maltratando de mim”. 

 

Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de Partir c’est garder son équilibre

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