Há algumas matérias circulando pelas redes sociais no qual a mãe da menininha Alice, conhecida nacionalmente pelas campanhas publicitárias do Banco Itaú, vem a público reclamar que sua filha tem sido alvo de memes a partir da última propaganda veiculada na qual aparece ao lado de Fernanda Montenegro repetindo palavras difíceis. Isso porque alguns brasileiros criativos usaram a “mensagem subliminar” da propaganda para ressignificar o que de fato mudaria o mundo, como por exemplo: Taxar grandes fortunas ou eleger Lula em 2022, pois, perguntada sobre quem a ensinou isso, Alice responde: A Vida no Brasil.
De fato, sabemos quanto estes dois últimos anos de pandemia, e com o pandemônio na presidência, foram assustadores e tenebrosos para o povo brasileiro. Péssima gestão da pandemia com alarmantes números de óbitos na casa dos 620.000, desemprego e inflação galopantes, política econômica desastrosa com investimento zero na saúde, educação, ciência e tecnologia, meio ambiente e cultura. Não bastasse o cenário desolador, há ainda o negacionismo vigente por parte do governo e setores da sociedade civil que, diante da nova onda da covid e suas novas cepas, querem minimizar os efeitos nefastos da sua incompetência para gerir a maior crise sanitária do Brasil. Tudo isso para dizer que sabemos que o Banco Itaú não está nem um pouco preocupado com a miséria humana que ele mesmo ajuda a produzir, diariamente, em nosso sistema capitalista selvagem.
As festas de fim de ano são simplesmente uma ocasião propícia para que a empresa celebre os lucros alcançados pela sua eficiente exploração do capita alheio e siga cada dia mais robusta, aproveitando dos lucros astronômicos, sem que qualquer ação social consistente seja feita em nome dos milhões de explorados da classe trabalhadora. Descobriu na face, graciosa, ingênua e luminosa de Alice a garotinha propaganda ideal para se fazer passar por cordeiro, ocultando os dentes afiados e a sua ganância sem limites de lobo velho e esperto. Ao juntá-la com Fernanda Montenegro então, baluarte da nossa cultura, agora imortal da Academia Brasileira de Letras, chegou ao cúmulo da idoneidade moral para se fazer passar por uma empresa socialmente preocupada com o país. Ora, para quem sabe que a propaganda pode ser a alma do negócio e que as empresas publicitárias são capazes de vender gelo até para o esquimó no polo Norte, o Itaú apenas explorou a bola da vez, ou talvez, a mina de ouro do momento. Neste caso a bela e cativante Alice.
Por isso me causa estranheza, para dizer o mínimo, que a mãe de Alice se sinta prejudicada pela filha ter se transformado em alvo de piadas através das redes. Em primeiro lugar quem sou eu para julgar o que um pai ou mãe devem ou não fazer com seus filhos, mas, pessoalmente, eu não permitiria que filho ou filha minha participasse de campanhas publicitárias para vender banco, apartamento, protetor solar, papinha ou qualquer produto antes da adolescência. Sou atriz e diante do isolamento social enfrentado ao longo da pandemia, estou na pindaíba como milhares de colegas desempregados e sem perspectivas, imagino que mesmo diante de um cachêt abusivo e miserável, como costuma ser o pagamento para a parte mais visível e explorada da cadeia comercial, eu venderia até cerveja, que eu detesto, para pagar as minhas contas. Por isso é provável que os pais de Alice tenham visto na propaganda uma oportunidade para saírem do vermelho.
Agora, não me venham com ingenuidade ou hipocrisia, pois no momento que você aceita os termos leoninos do contrato publicitário no qual permite a veiculação da imagem da própria filha para vender os serviços e produtos bancários em todos o território nacional com direitos conexos a TV, revistas e mídias sociais você já vendeu a alma ao diabo. Me perdoem, mas explorar comercialmente uma criança é arcar com o bônus e o ônus desta escolha. Submeter a própria filha a uma exposição desta natureza deveria ter sido profundamente questionada antes, uma vez que a criança não tem maturidade nem compreensão emocional para discernir o que uma campanha publicitária pode trazer de danos emocionais para um ser em formação. Me desculpe, mas reclamar de memes é não reconhecer que eles são a ponta de um iceberg infinitamente maior e mais danoso que foi a própria sequência de campanhas na qual Alice realizou nos últimos meses, tornando-se uma das maiores estrelas da televisão brasileira para o bem e para o mal.
Mas o mais perturbador, talvez, seja assaltar a tenra infância de Alice, praticamente um bebê de fraldas que recém aprende a falar e andar, e submetê-la ao nosso fetiche adulto de espiá-la em sua inocência de ser iluminado pronunciando palavras ensinadas como um animalzinho domesticado. Essa apropriação indébita do bem mais precioso de sua natureza infantil foi descaradamente exposta em rede nacional sem constrangimento e a preço de banana. Sim, porque se levarmos em conta que Alice ficará por pelo menos os seus próximos vinte anos, indissociavelmente ligada à marca Itaú e ao personagem de si mesma, ela não será convocada para nenhuma outra campanha publicitária. O que vale dizer que, se ao menos o preço deste castigo e superexposição à mídia tenham sido devidamente recompensados do ponto de vista financeiro, sua aparição não terá valido a pena.
Para coroar a sequência de absurdos o Banco Itaú apoia financeiramente o Instituto Alana, entidade que prima por projetos voltados para o bem-estar da criança e proteção à infância e juventude, com ações contra a exploração de crianças na publicidade e contra a propaganda para o consumo infantil. Imagino que o Itaú possa ter argumentado que Banco é uma atividade de adultos e feita para adultos e que, portanto, não infringiriam nenhum princípio do Instituto Alana que ajudam a promover.
Enfim, ambiguidades a parte, em nossa sociedade neoliberal não faltarão argumentos para defender a publicidade nem o banco. Sabemos que isso não muda o mundo, ao contrário, perpetua as suas desigualdades e injustiças fazendo com que, ingenuamente, adoremos as peças publicitárias “douradas” como mosquitos ao redor da lâmpada prestes a serem queimados sem dó nem piedade. Como diria o grande Bertold Brecht ao questionar a exploração monetária e defender o assalto ao banco: “O que significa um pé de cabra diante da fundação de um banco?” Lucros e taxas bancárias abusivas e propaganda enganosa: isso piora o mundo.
Que em 2023, nossos novos governantes criem leis mais claras e eficazes contra a exploração infantil na propaganda assim como limitem os ganhos econômicos perversos e abusivos da exploração bancária do capital pelo capital. Taxar igrejas e grandes fortunas, isso sim, muda o mundo.
Porto Alegre, 8 de janeiro de 2021.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.
Muito boas tuas reflexões, Nora! E sim,os bancos são grandes "devoradores" de gente, de humanidade! Representam um braço forte deste capitalismo voraz a que estamos submetidas/os! E sim...esta criança vem sendo exposta em demasia já há algum tempo. Esta campanha publicitária para o banco foi a cereja do bolo!
É óbvio que bancos não são essa gracinha de mudar o mundo e amor fraterno etc etc que o marketing quer nos fazer acreditar especialmente no final do ano. Agora, sem hipocrisia, se eu tivesse uma bebê inteligente e uma proposta para veicular anúncios e ganhar um bom dinheiro, eu permitiria sim. Por que não? Vamos ser sinceros, o anunciante te oferece sei lá 50.000, chutando baixo, e aí os intelectuais não aceitam? Não é nada imoral pelo que eu assisti. Agora reclamar de memes, não reclamaria, faz parte do jogo. E por favor, sem comparações da bebê com animalzinho amestrado, que frase infeliz, todas as crianças aprendem por repetição.
Excelente matéria.
Análise perfeita, lúcida, inteligente. Infelizmente o q vivenciamos - não apenas no Brasil - mas a nível mundial e o desprezo pela vida humana, a crueldade e a perversão, douradas ou não, por uma sociedade hipócrita dominada por governantes inescrupulosos.
Texto brilhante para nossa reflexão