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ESTRANHO TEMPO ESTE DA MODERNIDADE MEDIEVAL

Por Jorge Branco (*)

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"Assistimos o surgimento de uma extrema direita com novos contornos, atualizada, que funde o obscurantismo medieval com os valores da meritocracia e individualismo do capitalismo" - Henry Milleo


O neofascismo oferece uma proposta de ordenamento social a uma sociedade dilacerada pela miséria “Portanto, a biblioteca não podia ser ameaçada por nenhuma força terrena, pois era uma coisa viva... Mas se era viva, por que não deveria abrir-se ao risco do conhecimento?” Umberto Eco, O Nome da Rosa

Estranho tempo este no qual vivemos. Esse tempo, decididamente, deve nos impelir a abandonar o pensamento linear, fundado nas escolas cartesianas e positivistas da interpretação social. Não são leis transcendentais que regem a dinâmica da sociedade, tampouco o evolucionismo linear nos faria crer (sim crer, pois estaria fundamentado no campo das crenças e não no das evidências) em um avanço inexorável, quase natural, da sociedade.

São as violentas lutas pela dominação política, com a imposição da supremacia de uma razão de mundo sobre outra, que produzem a história. Não uma evolução retilínea, mas uma mastigação contraditória de valores e crenças, hierarquias e poder - ora destruídos ora atualizados - que gera a legitimação suficiente para que uma classe social possa vir a convencer as demais de que seus interesses e paixões são as verdades absolutas. O que não passa de particular é tornado universal por força da hegemonia.

A narração linear nos leva a acreditar que a Renascença e a modernidade seriam a superação absoluta do pensamento medieval. Os ideais da nova classe ascendente, a burguesia, teriam deixado para trás o pensamento de Santo Agostinho de condenação da ânsia por dinheiro e bens materiais. O racionalismo teria subjugado o conhecimento tradicional e a ciência tomando o lugar da fé. Assim, estaria aberto o caminho para o reconhecimento e efetivação da igualdade entre os indivíduos.

A dinâmica do capitalismo dinamitou tal esquema argumentativo. A tendência concentracionista do capital e a necessidade incessante de manutenção das grandes taxas de lucro impuseram uma dinâmica de crises sucessivas e permanentes e com ela a necessidade, cada vez mais exasperada, de se manter a ordem. O que somente pode ser feito através de um processo constante de legitimação da dominação, de convencimento de que o mundo é de oportunidades iguais e que pobreza e exploração são naturalmente circunstanciais.

Assim, a versão passa a ser bem mais relevante do que os fatos e a história contada passa a ser mais convincente do que a história vivida. Basta para isto que se controle os mecanismos de seleção da narração e os mecanismos de convencimento. A dinâmica da atualidade é marcada pela implosão dos consensos racionais e uma ressurreição dos valores tradicionais, porém não em oposição aos valores da dominação capitalista, mas à serviço dela.

Deste modo assistimos o surgimento de uma extrema direita com novos contornos, atualizada, que funde o obscurantismo medieval com os valores da meritocracia e individualismo do capitalismo. O culto da tradição, antes rejeitada, agora se vê associado ao culto da modernidade. A defesa do neoliberalismo se associa à defesa da família aristocrática, à supremacia racial e ao culto à autoridade e ao chefe. A valorização do sucesso individual se associa à rejeição da igualdade e à rejeição da ideia de direitos. De forma geral, se associa a refutação sobre qualquer sentido de correção social do mercado.

O fascismo do século XXI encontrou seu espaço político em uma espécie de “prestação de serviços” ao neoliberalismo, de garantidor, a manu militari se for preciso, da estabilidade do governo do capital. Com esta gramática, o neofascismo oferece uma proposta de ordenamento social, uma explicação sobre a realidade, a uma sociedade dilacerada pela miséria. O resultado da aceitação desta gramática é a naturalização dos valores do individualismo, da falsa igualdade de oportunidades e da justeza do mérito e, por consequência, da culpa pelo demérito.

Esse consórcio, em verdade, é uma rede intricada de valores reacionários assentada no culto à tradição, no combate ao saber e na construção do inimigo entrelaçados com a afirmação de valores da igualdade normativa e da liberdade selvagem do mercado ao que Umberto Eco chama de “fascismo eterno” ou “ur-fascismo”. Em sua recriação pós-moderna, o fascismo se distingue de muitas de suas versões raiz do início do século XX.

A crise das migrações, o desemprego endêmico, o uso continuado da guerra, a pandemia da covid-19 são tratadas como criação do inimigo, como um fato inventado, derivado não de relações de exploração em uma sociedade autoritária, mas pelo desajuste criado por aqueles que querem acabar com a tradição e a hierarquia e as tentativas de combater tais misérias, um esforço de ditadores (sic) que quer eliminar a liberdade dos indivíduos. Uma simbiose de anarcoliberalismo com chefe.

O conhecimento, a igualdade, a liberdade e a imaginação são assim criminalizados em sustentação de um modo de produção que, através de seus intelectuais, se auto descreveu como a superioridade da razão. Entretanto, a fim de se manter, rompeu com seus fundamentos iluministas e associou-se ao mais obscuro medievalismo.


(*) Jorge Branco é Sociólogo, Mestre em Ciência Política. Diretor Executivo do Democracia e Direitos Fundamentais


 
 
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