A nossa família sempre apreciou as artes, em geral, e a literatura em particular. Junto com o meu companheiro, Gabriel, costumávamos cantar e contar histórias para os nossos filhos, desde que eram bebês. Oportunizamos que ouvissem músicas de gêneros diferentes, além das tradicionais cantigas de rodas e histórias infantis, trazidas pela reedição da Coleção “Disquinho” do grande Braguinha. Antes de dormirem, líamos contos, poesia e livros infantis de diversos autores. Valentina passou a ter suas preferências, escolhendo o que desejava ler ou ouvir. Suas primeiras narrativas foram os desenhos, lindíssimos, que fazia sobre a mesinha amarela da sala de estar. Elaborava no papel o que, ainda, não sabia dizer com palavras. Ensaiava, no presente, o próprio e recente passado, assim como, o futuro imaginado. Valentina é, praticamente, dois anos mais velha do que o irmão, Aramis. Foi alfabetizada na escola Irmã Catharina, que frequentou desde os anos iniciais, do Maternal e Jardim de Infância, até o segundo ano do Ensino Fundamental I. Mas, ao contrário do que o nome sugere, a Escola Irmã Catharina nunca foi uma instituição educacional católica. Foi idealizada nos moldes propostos pela médica, pedagoga e educadora italiana, Maria Montessori. Um campo de pesquisa para educadores de São Paulo e do Brasil, que vinham à escola, localizada no Bairro Aclimação, conhecer na prática o que sabiam pela teoria. Ávidos por conhecer o ponto de vista pedagógico e humanista da pesquisadora, baseado no respeito, confiança, integridade e autonomia da criança. Um ambiente acolhedor, provocativo e inspirador, no qual os educadores encorajavam cada criança a desenvolver a sua criatividade no exercício de novas habilidades. Através da troca de saberes.
Naquela casa, em estilo dos anos 1940, cercada por pinheiros e salas com materiais de madeira, coloridos e atraentes, como o Material Dourado, os Encaixes Sólidos e o Sistema de Barras e Comprimentos, entre outros, seriam experimentados pelas crianças no seu desenvolvimento motor, cognitivo, sensorial e espacial. Foram criados e aprimorados, por Maria Montessori, a partir do seu contato com crianças portadoras de necessidades especiais, no período entre as duas grandes guerras na Europa. Perseguida pelo fascismo, na Itália, Montessori teve abrigo em outros países onde era amplamente reconhecida e respeitada. Pode aperfeiçoar a sua pedagogia, singular, que foi difundida e recebida com entusiasmo em muitos países.
Minha intuição estava certa. Valentina recebeu terra fértil onde plantou a sua semente. O tempo só fez amadurecer o que já existia. Ela seguiu lendo autores brasileiros e estrangeiros e, ao fim do Ensino Médio, no Marista Ipanema, decidiu cursar Escrita Criativa na PUC. Prestou vestibular para o curso, em 2021, onde passou em primeiro lugar. Seguindo a sua vocação para as letras, ela chegou à final, duas vezes consecutivas, no concurso literário “Rasuras”. Promovido pelos estudantes dos últimos anos, cada participante se inscreveu sob pseudônimo. Os jurados são os próprios alunos sem qualquer interferência de professores. Na noite de terça-feira, 5 de julho, os finalistas foram conhecidos pela comunidade acadêmica e, Valentina, conquistou o 2º lugar na categoria Poesia. Segue abaixo o seu trabalho. Eu, Gabriel e Aramis, seus familiares e amigos nos sentimos orgulhosos e celebramos juntos!
LAGARTAS SOBRE FOLHAS DE LARANJEIRA,
POR VALENTINA ALBUQUERQUE
Minhas palavras soaram como uma cacofonia enquanto membros de uma orquestra sinfônica praticavam seus instrumentos de maneira desordenada em minhas cordas vocais Quando dei por mim, era tarde – me convenço de que foi o mercúrio retrógrado, embora você fosse rir dessa desculpa A verdade é que tenho ótimas intenções que se convertem em péssimas atitudes ao longo do caminho, por algum erro de cálculo Eu nunca fui boa com números e probabilidades. Minhas palavras soaram como lâminas nos seus olhos quando elas deveriam ter feito cócegas na sua nuca – eu queria que essas lâminas voltassem para mim Uma garota disse que eu merecia sangrar até meu corpo secar e apodrecer sob o sol ela também disse que mesmo as situações pequenas merecem julgamento severo e eu não devo recorrer a nenhuma chance de liberdade Consegui olhar no fundo dos olhos dessa mulher e então eu vi o meu reflexo Curiosamente, ela tinha sobrancelhas grossas e uma pinta acima do lado esquerdo dos lábios superiores Como eu. Não duvido do perdão e tenho a certeza de que agora tudo está bem Mas do que adianta ter a segurança externa Quando dentro de mim a culpa corrói como lagartas sobre folhas de laranjeira? Meus membros são devorados de baixo acima e sou incapaz de expulsar as malditas que se espalham como ervas daninhas Mas um garoto disse que eu podia ser menos dura comigo. Ele disse para eu ter calma. Eu olhei no fundo dos olhos dele, com medo de ser mais uma projeção minha Felizmente, só enxerguei o azul da sua íris E foi assim que eu soube que as lagartas podiam virar borboletas. (*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.
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