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A TRISTEZA DO ONOFRE, POR PAULO GAIGER (*)


Onofre anda amolado, cabisbaixo, não relincha, só resmunga, bufa e bufa. Convido pra dar um trotezito e meu pangaré nem se move, nem demonstra qualquer alegria, nem move as patas sempre ávidas por um passeio no campo. Ao contrário, vira ou baixa o carão e bufa e bufa. Fiquei com ganas de levá-lo ao psicólogo, o médico que cuida da cabeça, das frustrações, das tristezas, dos recalques, dos remordimentos... mas minha neta me convenceu de que não existe atendimento para pangarés abatidos, taciturnos e deprimidos. Suspeito que Onofre está querendo dizer alguma coisa, falar de alguma contrariedade, algo que lhe ofendeu, algum desgosto que se instalou em seu coração. Ao longo dessa vida de muitos sóis e luas, aprendemos a nos entender, sinais, assovios, afagos... Mas isso está me deixando com os miolos em redemoinho: ¿Qué le pasa a mi caballo? Quando observei alrededor, constatei que o Garnisé já não canta mais às seis da matina, que Gisela, minha galinha poedeira, já não bota ovos e meu guaipeca de toda uma vida, o Bento, anda com aquela cara de melancolia, desfeito, enrolado sobre si mesmo. Matutei se por acaso uma peste da tristeza não teria invadido meu rancho tirando a alegria dos meus bichinhos? Até a Mimosa, minha vaca leiteira, havia secado. Chamei o Bento para brincar, atirei gravetos e ossos de costela e ele nem se moveu de seu canto. Orelhas desabadas, o rabinho sem vida. Tentei de tudo para reanimar a bicharada. Dom Leandro, Dom Vitor e Dom Thiaguito trouxeram suas guitarras campeiras e fizeram uma cantoria de encher os olhos. Ouvidos moucos, nada de nada. Dona Maria e Dona Nora dançaram como nunca, com sorriso no rosto e no corpo. Olhares extraviados, nada de nada. Dona Marina e Dom Mauro prepararam uma mesa de especiarias para os bichos. Bocas fechadas, nada de nada. Dona Fabiana e Dona Ana contaram histórias de tocar o coração. Orelhas murchas, nada de nada. Dona Patrícia, bióloga de renome, fez estudo de caso, verificou, indagou, ferveu o tutano... Corações alheados, nada de nada. Dom Francisco Marshall veio da capital para tentar entender os acontecidos. Estudioso de mil línguas deu com bichos apenas respirando na escuridão de uma noite sem fim. Mudez e ausência, nada de nada. Faz poucos dias, minha neta, que estuda veterinária na faculdade da cidade, estava fula da vida porque o governo retirou os recursos da pesquisa, cortou verbas importantes da universidade e da educação. Ela que se dedica à pesquisa sobre equinos estava indignada e jururu, chorou no meu ombro dizendo, entre soluços, que tinha ganas de chicotear o traseiro do delinquente, eleito presidente. Acho que o Onofre ouviu a conversa e desabou, o coitado. Foi o que constatei. Deve ter comentado com seus amigos do rancho na língua universal dos animais, que nós desconhecemos. Bento, Garnisé, Gisela e Mimosa entraram nesse desânimo de deixar a gente consternada, sem saber o que fazer. Penso que por isso tudo, acabei sonhando com o Onofre falando comigo: “Como que um delinquente empoderado corta verbas da educação e da pesquisa e vocês humanos, bípedes, metidos a superiores e mais inteligentes, ficam nesse marasmo, nesse mormaço de alma, nesse estado intenso de acovardamento? E ainda podem reelegê-lo. É por isso que estamos entristecidos”. Acordei desacorçoado e com os olhos feito barragem. Desta vez, eu é que chorei no ombro de minha neta.


(*) Paulo Gaiger é artista professor do Centro de Artes – UFPel.

 
 
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