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A Crise da Democracia Como Parte da Crise Geral da Ordem Social Capitalista, por Enio Cardoso*

Atualizado: 4 de ago. de 2024

Introdução do tema

Este texto é o script de uma apresentação que fiz no III Seminário Internacional de Ciência Política, que ocorreu na UFRGS em novembro e dezembro de 2023. Mas, ele é também a síntese de um artigo que escrevi, a princípio, para a revista Debates, que é publicação trimestral do Núcleo de Estudos Sobre a América Latina (NUPESAL) do PPGCP/UFRGS, porém acabei enviando para uma universidade de Portugal, onde deve ser publicado no primeiro semestre de 2024. O tema geral discutido aqui versa sobre a crise pela qual o modelo de democracia liberal representativa está atravessando. Sim, há uma profunda crise na democracia atualmente. Uma crise que já vem se arrastando faz algumas décadas. O seu início ocorreu mais ou menos lá pelos anos 70s do século XX, e é muito mais profunda e abrangente do que as simples metamorfoses do modelo representativo, apontadas por Bernard Manin, ainda na década de 80. Esta é uma crise que vai muito além do campo político. Aliás, ela nem se originou no campo político. O seu escopo abarca todos os aspectos daquilo que Nancy Fraser chama de Ordem Social Capitalista, a qual inclui a esfera política, mas não se resume a ela. Assim como, a ordem social capitalista inclui aspectos econômicos e não econômicos das sociedades atuais, mas não se resume ao sistema econômico. Ah! Por uma questão de honestidade intelectual, esta minha apresentação teve como principal referência teórica o último livro escrito pela pesquisadora estadunidense Nancy Fraser, intitulado Cannibal Capitalism, publicado em 2022. Este livro é fascinante e esclarecedor, recomendo a leitura.

 

O conceito de democracia liberal representativa

Eu vou tentar concatenar as ideias de forma que elas sigam uma ordem processual e possam ser entendidas por quem estiver lendo. Assim, eu quero começar falando brevemente sobre o conceito de Democracia Liberal Representativa, o qual é o regime político adotado pela maioria dos países ocidentais. E aqui, a ideia é ser bem sintético e superficial, sem entrar nas questões filosóficas que constituem o referido conceito.

 

A origem da democracia, a maioria das pessoas sabe, se deu na Grécia antiga (Atenas) por volta de quatro séculos antes de Cristo. Porém, eu vou pular mais ou menos uns 20 séculos dessa trajetória inicial. Então, podemos dizer que, o sistema político que temos hoje, começou a ser gestado, na modernidade europeia, lá no século XVII, passando pelas guerras e revoluções dos séculos XVIII e XIX, adentrando pelo século XX, quando a democracia adquiriu os aspectos e características que praticamos hoje, com a adoção definitiva de constituições, separação de poderes e sufrágio universal. Em maior ou menor grau, a maioria dos países ocidentais, passou a utilizar este modelo até o final do século XX.

 

Robert Dahl, pesquisador estadunidense do século XX, chamou este modelo de Poliarquia, a partir do método e critérios que elaborou para avaliar se uma sociedade seria mais ou menos democrática. Dahl considerava que a democracia plena seria um ideal praticamente impossível de ser alcançado, portanto passou a chamá-la de poliarquia, com seus estágios de aprofundamento mais, ou menos democráticos. Uma poliarquia básica, ou seja, aquilo que chamamos cotidianamente democracia hoje, de acordo com Dahl, é aquela onde existe competição pelo poder, eleições livres e universais, participação pública através do voto, a possibilidade de ser votado, de participar nos governos, livre associação e respeito às regras preestabelecidas.

 

Além de Robert Dahl, o século XX nos brindou com outro pensador importante, o qual também se debruçou sobre a análise da democracia. Ele foi o austríaco Joseph Schumpeter. Schumpeter não se importava com questões normativas e filosóficas sobre conceito de democracia. O que deveria ser ou não, eram especulações filosóficas que não faziam parte dos estudos de Schumpeter. Ele procurou analisar o que considerava efetivamente existente. De acordo com o seu modo de ver as coisas, a democracia era apenas um método para se chegar a decisões políticas. Portanto, a ideia de bem comum seria apenas um ideal imaginário, desprovido de realidade fática, assim como a vontade comum.

 

Schumpeter, na verdade foi o pensador que mais bem descreveu a verdadeira relação entre sistema político e o campo econômico. Ele era totalmente contrário ao engajamento do campo político na resolução dos problemas de desigualdades sociais. Para ele, o mercado se encarregaria desta questão. Com Schumpeter, o campo político e o campo econômico seriam totalmente separados um do outro. O que o pensador austríaco nunca ousou mencionar é que a separação do campo político do econômico, nos moldes que preconizava, em sociedades capitalistas, apenas serviria para evitar que as maiorias pudessem influenciar as decisões políticas que afetam a economia. Evidentemente, ele também nunca reconheceu o fato de que o mercado, ou seja, o campo econômico, desde a modernidade e a fundação dos estados nacionais, sempre foi o grande definidor de como o campo político deveria funcionar. Eu diria inclusive mais do que isso. O modelo político que começa a ser construído, com o final das monarquias absolutistas, foi sendo moldado exatamente de acordo com os interesses do capitalismo e da classe burguesa, a qual vai se consolidando de forma definitiva, durante aquele período.

 

O advento dos estados nacionais e a consolidação da burguesia como classe dominante, segundo Nancy Fraser, teria sido a segunda fase de desenvolvimento do capitalismo e pode ser chamada de capitalismo colonial liberal. Segundo ela, o capitalismo passou, até os nossos dias, por 4 fases distintas de desenvolvimento, quais sejam: capitalismo mercantil (durante o período das grandes navegações), capitalismo colonial liberal (durante os séculos da modernidade europeia, adentrando pelo século XX), capitalismo monopolista gerido pelo Estado (que vai até mais ou menos os anos 70 do século XX), tendo o estado de bem estar social como sua grande marca, e o capitalismo neoliberal globalizante (o qual inicia nos anos 70 e segue até o presente momento).

 

A crise

Esclarecidas essas questões básicas sobre o conceito, vamos para a crise da democracia, tema principal desta apresentação.


Como mencionei antes, os problemas enfrentados pela democracia, atualmente, não se resumem ao campo político. Eles abrangem todos os aspectos da ordem social capitalista. Dessa forma, se esta crise não se originou no, e vai além do campo político, então, por uma questão de lógica, ela não pode ser resolvida exclusivamente com reformas nas instituições da democracia representativa. E por que isso? Muito simples, porque o campo político, no geral, não se autodetermina, ele é, no mais das vezes, consequência da correlação de forças dentro das sociedades. A esfera política, quase que invariavelmente, toma decisões obedecendo a diretrizes definidas e organizadas pelos grupos sociais com verdadeiro poder nas sociedades. E, dentro da ordem social capitalista, o campo econômico, hoje controlado pelas grandes corporações e pelos donos do capital financeiro especulativo global, é o que determina essas diretrizes políticas, gostemos disso ou não, queiramos acreditar nisso ou não. As nossas crenças normalmente não alteram os fatos concretos.

 

Para que fique mais bem entendido, vamos aprofundar um pouquinho este ponto. Eu afirmei que o campo político não é independente do campo econômico, assim como, o capitalismo não é apenas um sistema econômico, mas sim uma ordem social. Vamos tentar esclarecer isso.

 

Segundo Nancy Fraser, nas sociedades atuais, a ordem social capitalista depende de diversas precondições para se desenvolver. Mas de todas essas precondições o capitalismo paga, e muito mal, apenas pela produção de comodities. Esta é relação entre os donos do capital (meios de produção) e aqueles que realmente produzem, ou seja, os donos da força de trabalho, tão bem teorizada e explicada por Marx.

 

Acontece que o capitalismo depende, de forma irremediável de, pelo menos, mais quatro condições estruturais, para se desenvolver e sobreviver, pelas quais, em geral, ele não paga absolutamente nada. Ou seja, assim como todos nós já sabemos, o capitalismo é um sistema sangue suga das sociedades.

 

Então vamos discorrer um pouco sobre essas quatro condições necessárias para o desenvolvimento do capitalismo, apontadas por Nancy Fraser, pelas quais ele não paga nada.

 

A primeira delas é a reprodução social, a qual fornece gratuitamente o material humano ao sistema, ou seja, formação de mão de obra e todas as relações e funções advindas desse processo. A ordem social capitalista não paga pela reprodução social e, grande parte das inúmeras funções não remuneradas são desempenhadas por mulheres, ou seja, é um sistema que, além de sanguessuga, perpetua a dominação masculina nas sociedades. Mas isso não é tudo. A acumulação capitalista sem fim ainda transforma as principais etapas da reprodução social em comodities, que irão proporcionar lucratividade aos donos do capital, como educação e saúde, entre outras.

 

A segunda precondição necessária para o desenvolvimento do capitalismo, são os recursos da natureza que fornecem energia e matéria prima para a produção de comodities, os quais são extraídos gratuitamente pelo sistema, sem que este se preocupe em pagar por eles, nem mesmo restitui-los, como se o planeta fosse uma fonte infinita e auto restaurável de recursos a disposição das grandes corporações e donos do capital. Mas, como se expropriar os recursos naturais não fosse o suficiente, a ordem social capitalista, se utiliza, também de forma gratuita, da natureza (incluindo a atmosfera) como depósito para todos os dejetos advindos do seu processo produtivo, ameaçando assim todas as formas de vida do planeta.

 

A terceira condição é que, para manter o sem-fim processo de acumulação, o capitalismo precisa expropriar riqueza das periferias para o centro do sistema. Por isso as diferenças brutais entre os níveis de desenvolvimento humano nos países centrais e na periferia. Esta condição revela a existência de zoneamento e hierarquização entre aqueles que podem ser legalmente explorados, através de contratos, e aqueles, os quais serão simplesmente destituídos de seus bens.

 

A quarta e última condição é exatamente o objeto de análise deste trabalho, ou seja, o poder público, ou sistema político, o qual garante o direito à propriedade, o cumprimento de contratos, reprime rebeliões anticapitalistas e imprime dinheiro. Em última análise, o sistema político, exatamente por estar subordinado ao campo econômico, e ser moldado por ele, acaba sendo instrumento fundamental para garantir ao capitalismo o direito de utilizar as outras condições mencionadas anteriormente, e sem pagar por elas.

 

Notem que, em todas as fases de desenvolvimento capitalista ocorreram diferentes crises. E Isso ocorre, segundo Nancy Fraser, porque o capitalismo, pelo seu caráter expansionista, muito embora dependa das condições mencionadas acima, de tempos em tempos, entra em uma nova forma de acumulação e precisa realizar mudanças. Então ele desestabiliza o que existia antes para estabelecer novas regras, que favoreçam a nova forma de acumulação.

 

Novamente, esta crise na democracia, da qual estamos falando, não foi gerada dentro do sistema político. Ela é parte de uma crise geral que abarca todos os aspectos da ordem social capitalista, que eu acabei de descrever. Isto está ocorrendo porque a ordem social capitalista, através dos seus quase ilimitados recursos, está desestabilizando o sistema político, pois o considera obsoleto para as atuais formas de acumulação de capital. Vamos repetir isto aqui, pois é de extrema importância para entendermos o atual momento da democracia. O capitalismo tem no seu DNA a tendência de produzir crises políticas periódicas, objetivando adequar o poder público ao modelo de acumulação que estiver se estabelecendo. A crise atual da democracia, iniciada nos anos 70 do século XX, é um processo que visa adequar o sistema político aos interesses do modo de acumulação atual representado pelo capitalismo global financeirizado (neoliberalismo).

 

Vejam bem, todas as formas de produção e acumulação capitalista dependem do poder público como o garantidor de que as regras, criadas e estabelecidas em seu benefício, serão cumpridas. Historicamente, este poder público tem atuado dentro de estados nacionais territoriais. Foram os sistemas legais elaborados e garantidos pelos poderes públicos nacionais que possibilitaram aos atores privados buscar os seus interesses dentro dos territórios, sem ter que se preocupar com a interferência política contrária. Foram os estados nacionais que usaram a força para colocar abaixo a resistência contra as expropriações que originaram a propriedade capitalista. Foram os estados nacionais que, de acordo com os interesses do capitalismo passaram a imprimir moeda. Foram os estados nacionais que, com dinheiro público, construíram, constroem e mantêm a infraestrutura necessária para o desenvolvimento do capitalismo. Os mesmos, também, agiram para compensar as falhas do mercado e mitigar crises econômicas, incluindo aquelas que atingiram a própria reprodução social, da qual o capitalismo depende, mas não custeia.

 

No entanto, a ordem social capitalista, pela sua natureza expansionista mencionada antes, tem interesses que vão muito além das fronteiras dos estados nacionais territoriais. Segundo Nancy Fraser, a princípio, o poderio militar de alguns estados garantiu a expropriação e o roubo de riquezas das periferias para o centro do sistema. Mas isso também não se mostrou suficiente e os arranjos políticos e acordos internacionais passaram a acontecer e a vigorar.

 

Portanto, tanto no âmbito interno dos estados, quanto no âmbito global, a ordem social capitalista depende a sua sobrevivência do poder público. Mas quando este não está servindo mais aos seus interesses, é desestabilizado e modificado para se adequar a nova forma de acumulação se estabelecendo. E é exatamente isso que estamos experimentando atualmente, e que muitos cientistas políticos e pesquisadores chamam, tão somente, de crise da democracia.

 

Lembremos aqui que, no período pós Segunda Guerra Mundial, o capitalismo havia entrado na sua terceira fase de desenvolvimento chamada capitalismo monopolista gerido pelo estado, quando, devido as crises anteriores, o estado passou a influenciar o processo de acumulação. Neste período o poder público, sob controle de uma parcela, diríamos, mais “racional” dos donos do capital, assumiu um papel bem mais proativo no sentido de mitigar os desequilíbrios provocados pelo mercado, assumiu parte dos custos da reprodução social, mobilizou esforços para alcançar o pleno emprego, incentivou o consumismo da classe trabalhadora, aceitou negociar com sindicatos, compensou as crises econômicas e, de certa forma, disciplinou o capitalismo como um todo. Essas medidas geraram uma certa estabilidade por algumas décadas. Pelo menos, dentro dos países centrais do sistema, porque nas periferias, o que ocorria era a expropriação e exploração, no seu estado mais puro. A América Latina e o restante do terceiro mundo que o digam.

 

Então, a partir da década de 70, setores importantes da ordem social capitalista passaram a manifestar insatisfação com o que consideravam uma inadmissível intromissão do estado nos negócios privados. Além disso, esses setores, não estavam mais dispostos a aceitar o estado custeando parte da reprodução social, com impostos e baixa lucratividade do capital. Dessa forma, ocorreu aquilo que Wolfgang Streeck chamou de uma revolta coordenada das grandes corporações contra os impostos.

 

Paralelamente a isso, e como parte do mesmo processo, inicia-se a instalação dos mercados financeiros globais como as novas autoridades, as quais os governantes nacionais eleitos deveriam obedecer. Os bancos centrais, “independentes” dos governos nacionais, e as instituições financeiras internacionais, passaram a substituir os estados como árbitros em uma economia cada vez mais globalizada. Foram essas instituições que produziram, com a aprovação dos governos e parlamentos nacionais (sob controle do grande capital), as regras que governam as sociedades ocidentais atuais. São essas instituições que arbitram as relações entre capital e trabalho, cidadãos e estado, centro e periferia, e muito principalmente entre devedores e credores. E aqui é importante enfatizar. Segundo Nancy Fraser, é através do crédito e débito que o capital canibaliza a força de trabalho, disciplina os estados, transfere lucro da periferia para o centro do sistema e suga as riquezas das sociedades e da natureza.

 

Notem que até a década de 70, durante o capitalismo gerido pelo estado, as regras e a proatividade do poder público disciplinavam os interesses de curto prazo do capital, para garantir uma acumulação sustentável no longo prazo. Agora, com a adoção da racionalidade neoliberal, o capital financeiro disciplina as ações dos estados, e o interesse público, em benefício dos interesses imediatos dos proprietários e investidores privados.

 

E é exatamente aqui que se localiza o coração da grande crise pela qual passa a democracia liberal representativa, neste momento histórico. No capitalismo global financeirizado prevalece a lógica de que existe um modo de agir, mas sem a devida autonomia de governos. Os poderes públicos nacionais se tornaram tão comprometidos e amarrados aos interesses dos mercados, que até mesmo o aquecimento global, o qual ameaça a existência da vida no planeta (crise ecológica), está sendo negligenciado. O planeta está sendo literalmente destruído, mas qualquer solução que ameace a hegemonia dos mercados financeiros é imediatamente rechaçada e tratada como radicalismo de comunistas

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Neste tipo de regime, as instituições financeiras internacionais ditam as regras, não os estados. Essas instituições não prestam contas a ninguém e a nem uma outra instituição pública, agem exclusivamente de acordo com os interesses do capital. O resultado disso é o esvaziamento do poder público e das instituições democráticas, as quais, adotando a racionalidade neoliberal, passaram a se preocupar em satisfazer exclusivamente as demandas das grandes corporações e do mercado financeiro em geral. O referendo na Grécia em 2015, a Lava Jato no Brasil em 2014, as decisões do BC brasileiro sobre as taxas de juro em 2023, e a aprovação do “déficit zero” pelo congresso brasileiro para 2024, são exemplos emblemáticos de como as forças do mercado controlam as instituições políticas e agem para prevenir qualquer decisão contrária aos seus interesses. Isso tudo, por sua vez, tem aumentado vertiginosamente a descrença das populações na democracia e suas instituições.


Uma outra questão importante para o momento histórico atual, a qual eu também gostaria de salientar é que, na prática, segundo Nancy Fraser, uma crise somente passa a existir de fato quando uma grande parcela de atores sociais passa a sentir seus efeitos. Assim, as suas causas começam a ser procuradas, identificadas, e passam a ser o alvo de medidas anticrise. Somente a partir deste estágio específico uma crise começa a ser enfrentada, o que envolve necessariamente a ação coletiva daqueles afetados. Neste sentido, eu quero chamar a atenção para o papel de extrema importância que os grandes conglomerados privados de comunicação de massa cumpriram e cumprem na criação e manutenção do consenso (pensamento único) sobre o neoliberalismo.

 

O problema, ao qual me refiro é que, de uma maneira geral, a grande mídia privada mundial é propriedade dos setores financeirizados do capitalismo global e, obviamente, aderiu de forma incondicional a racionalidade neoliberal. Até agora, eles estão conseguindo evitar que a percepção desta crise chegue até a maioria das populações. E quando isso não é possível a, muito bem-feita, propaganda neoliberal atribui a responsabilidade dos problemas a outros atores, principalmente à “intromissão” do estado e da classe política na economia.

 

Utilizando-se dos meios de comunicação privados, a propaganda neoliberal atribui a culpa dos problemas sociais à intervenção do estado na economia. Aqui, as populações são, literal e propositalmente, enganadas, pois a esfera política está sob o controle da ordem social capitalista e não o contrário. Mas, obviamente, é muito mais fácil para o capitalismo culpar a classe política, a qual pode ser descartada e substituída a cada processo eleitoral, do que fazer as necessárias mudanças econômicas.

 

Esta propaganda apregoa que, a corrupção e o paternalismo do estado são os grandes vilões dos problemas sociais existentes. Assim, a solução proposta pelo neoliberalismo é mais desregulação da economia, eliminação de direitos trabalhistas e qualquer interferência de governos nos processos econômicos.

 

Aliás, a propaganda neoliberal tem demonstrado ser bastante eficaz. Como consequência, é possível observar uma desilusão quase completa das populações nas instituições democráticas, o que abre as portas para o surgimento de salvadores autoritários. Não por acaso, estão surgindo governantes populistas de extrema direita, como Trump, Bolsonaro, Miley e outros, ao redor do mundo, os quais prometem soluções fáceis para problemas complexos. Apostando na ignorância e falta de educação política das populações, esses líderes propõem como solução, exatamente o aprofundamento daquilo que gerou os problemas, ou seja, um estado cada vez mais fraco na defesa dos interesses públicos, mas extremamente forte na defesa dos interesses dos proprietários do capital. Notem que o ponto em comum do programa político dos líderes mencionados acima é exatamente a completa desregulação da economia e das relações de trabalho, com o enfraquecimento das instituições públicas, dando aos mercados globais total controle sobre as decisões de governos.

 

Conclusão

Sendo mais claro e específico ainda. O maior desafio que as forças progressistas e democráticas vão enfrentar, em todo o mundo, durante as próximas décadas, é que setores importantes da ordem social capitalista, estão apostando suas fichas na ideia de que eles não precisam mais de democracia. Para esses setores, a democracia se tornou um problema e precisa ser substituída por governos autoritários. E por que isso? Muito simples, porque a racionalidade neoliberal não quer qualquer tipo de interferência de governos, ou das populações, no processo sem-fim de acumulação de capital nas mãos de cada vez menos pessoas. Além disso, não é muito difícil de se perceber que, para o capitalismo neoliberal financeirizado, governos autoritários sob seu controle significaria o paraíso na terra.

 

Bem, levando em consideração o que eu disse até aqui, a conclusão lógica é que estamos todos fritos, devemos nos preparar para o apocalipse, e uma era pós apocalíptica, como aquelas que vemos em séries de ficção científica futuristas de tv, certo? Sim, devido às circunstâncias, este é um cenário perfeitamente possível. No entanto, felizmente, tratando-se de sociedades humanas, nem tudo é previsível. Além disso, como já dizia Raymond Willians, não existe uma hegemonia sem que haja uma contra hegemonia, por mais insignificante que ela seja, ou possa parecer.

 

O que eu quero dizer é que, já é possível observar uma crise de hegemonia, dentro da ordem social capitalista, puxada por alguns fatores importantes, o que, segundo Nancy Fraser, pode estar sinalizando para uma revitalização do poder público.

 

Primeiro, podemos citar a questão das mudanças climáticas. Muito embora esta seja uma batalha muito difícil, devido ao poder das grandes corporações proprietárias das fontes de energia fóssil, as grandes catástrofes naturais e a necessidade de ação dos estados estão aumentando a percepção, junto a população, de que esta crise está, literalmente, invadindo o nosso quintal. A segunda questão foi a pandemia da Covid 19, a qual também exigiu ações muito contundentes dos estados, muito embora fortemente influenciados e direcionadas pela indústria farmacêutica.

 

Uma forma bem simplista de explicação desta questão, mas que sintetiza o processo todo é que, como mencionei antes, já é possível se observar uma disputa pela hegemonia, dentro do próprio capitalismo, sobre os rumos a serem seguidos. Por um lado, há um percentual de proprietários do capital que acredita que o frágil modelo de democracia liberal representativa ainda pode continuar a proporcionar os ganhos de acumulação que eles desejam. Esses setores têm seus representantes e apostas dentro do sistema político como John Biden, Obama, Lula e, agora Kamala Harris, entre outros líderes democráticos de centro esquerda em todo o mundo. Mas, até mesmo alguns líderes conservadores de direita, como membros do antigo partido Republicano (anteriores a Trump) nos Estados Unidos, e conservadores na Europa (Reino Unido, França e Alemanha), também defendem que o atual modelo de democracia ainda pode ser mantido.

 

Por outro lado, temos um percentual muito importante de donos do capital, principalmente aqueles ligados ao capital financeiro especulativo, que já não quer democracia, nem qualquer interferência da esfera política nos seus negócios privados. Este grupo é representado dentro do sistema político por líderes fascistas de extrema direita como Trump, Le Pen, Bolsonaro, Miely, Erdogan e muitos outros deste calibre ao redor do mundo.

 

As consequências e o que virá deste contexto de disputa ainda não está no horizonte. Sendo bem realista (ou pessimista), não sabemos sequer se teremos um planeta para abrigar o que resultará desta crise. Mas, talvez em algumas décadas, o seu desfecho definirá as regras do que deveremos presenciar. As alternativas mais evidentes hoje são: 1) ainda teremos democracia formal, por mais limitada que ela seja, ou (2) mergulharemos profundamente em regimes autoritários fascistas.

 

E “para não dizer que não falei de flores”. No campo mais progressista, a principal marca é a inexistência de uma alternativa efetivamente clara e viável de programa, que possa fazer contraponto ao que existe dentro da ordem social capitalista. O aspecto mais visível deste campo ainda é uma exacerbada fragmentação em que os mais diversos movimentos identitários estão muito mais preocupados em garantir o direito de serem explorados dentro da ordem neoliberal do que em construir uma alternativa de superação do status quo.

 

Enquanto este período de indefinições persistir vamos vivenciar a disputa pela hegemonia dentro da ordem social capitalista se manifestar nos processos eleitorais, pois serão esses dois setores os grandes financiadores das campanhas. Portanto, o volume de recursos e a eficácia da propaganda, relacionados às expectativas do eleitorado, no mais das vezes, vão determinar os vencedores dos pleitos. Não esperemos tempos fáceis pela frente. E assim como em todos os momentos de grandes crises que a humanidade tem vivido, ao contrário do que a maioria acredita, a participação das populações afetadas por este processo será de extrema importância para o desfecho final desta crise. Além disso, levando em consideração o fato de que este é o mundo real e não o roteiro idiotizado dos filmes hollywoodianos, a possibilidade de um final infeliz é perfeitamente plausível. * Enio Cardoso é cientista político.

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