A CADEIRA DO DRAGÃO E A DITADURA, POR BRUNO MENDONÇA COSTA*
- Alexandre Costa

- 14 de abr.
- 3 min de leitura
O interrogatório inesquecível
(Democracia sempre. Ditadura nunca mais.)

As notícias de 08 de janeiro fizeram-me recordar o episódio que já contei a vocês, mas que vou contar de novo. Acreditem que não é uma boa recordação. Ela se faz presente nos meus sonhos e nos momentos mais insólitos. Mas é importante que todos saibam e que se convençam de que a consigna “tortura nunca mais” tem que “ser para valer”. Vale como um depoimento público. A tortura é uma pequena parte de um “todo maior”, chamado de ditadura. Quando me colocaram naquele avião da FAB, algemado, pulso com pulso, ao Raul Carrion, preparei-me para o pior. Confesso que pensei que não haveria retorno. A fúria deles seria semelhante a de Porto Alegre.Se resisti aqui – pensei – poderia resistir lá. E, se não resistisse, seria a parte final de minha vida com a idade de 33 anos. Esse posicionamento me tranquilizou. Detalhes, conto em outra ocasião. Mas não poderia “dar nenhum nome”, pois seria uma “morte moral”, uma vergonha para o resto de minha vida. O que vou contar - que foi um detalhe e a pior parte de todo o episódio - é o que aconteceu no final de um período de 30 dias. Antes, em Porto Alegre, foram muitas as sessões de tortura, principalmente o pau de arara. Não forneci nomes de companheiros. Eu e o Raul Carrion, fomos encaminhados para a OBAN, em São Paulo, sob a vigilância severa do policial torturador mais sádico e cruel do DOPS, obediente e submisso às ordens do delegado Pedro Seelig, seu chefe, condecorado com a “medalha do pacificador”. Era de prever que os interrogatórios na OBAN seriam mais sofisticados e diferentes das sessões anteriores na DOPS de Porto Alegre, com pau de arara e choques em diferentes partes do corpo. Imaginem o cenário somente neste detalhe da “cadeira-do-dragão”. Uma grande cadeira de ferro, onde é colocado o preso, fortemente amarrado. Na frente dela o “anjo do mal”, o torturador-chefe. Ao lado da cadeira, fingindo-se de enfermeiro, outro “anjo do mal” de menor hierarquia, vestido de jaleco branco. Em suas mãos uma seringa de 20 ml, cheia de um líquido branco-amarelado. O “anjo do mal” chefe, sabendo que sou médico, pergunta-me: sabe o é que isso? Respondo que o líquido deve ser um barbitúrico e alerto o torturador de que é um produto químico de risco elevado, pois uma dose um pouco maior do que a terapêutica, pode levar ao óbito. O “anjo auxiliar” insiste em receber a ordem para injetar o produto. Ele não é injetado e serve como uma permanente e sinistra ameaça. Seguem-se choques de diferentes intensidades, acompanhados de perguntas destinadas a obter confissões, informações e principalmente nomes. A face do “anjo do mal” vai se tornando mais contraída, suas feições ainda mais duras. O objetivo não é atingido. Ele e seu auxiliar ficam frustrados e irritados. Segue-se, então, um choque de grande intensidade. O “anjo” desaparece da minha frente. Tudo fica preto como carvão. O torturado, por um tempo indefinido, “morre”, não sente mais nada. Passa o efeito do choque. Recobro a consciência. Aos poucos ouço a voz distante do “anjo”, os gritos histéricos do auxiliar, insistindo que seja feito um choque de intensidade maior. Mal recobro a consciência, vem o segundo choque, tão forte como o primeiro. Senti que o tempo para “voltar à vida” pareceu-me um pouco maior. Mas, embora um pouco confuso, – pensei - estou vivo e vou continuar sem dar nenhuma informação. Ouço a ordem do “anjo do mal” para desfazer as correias que me amarravam à cadeira. Voltei para à cela. Uma segunda sessão foi feita dois dias depois. O cenário e as perguntas foram quase iguais. De novo o produto não foi usado. Imaginei que muitos companheiros devem ter passado por esta “experiência”. Em quantos delas o produto foi usado? E a cadeira medieval onde estará? Brilhante Ustra, o “herói da ditadura”, não existe mais. Tortura não tem prescrição, é um crime de Estado. Fatos como estes não devem ser esquecidos, nem perdoados. Interrogado por um jornalista, afirmou que nunca torturou ninguém. Negou que tenha me torturado. Pena que ele não tenha sido julgado. Mas, a vergonha e a desmoralização, que destruíram sua carreira de soldado e de homem, vão sobreviver ao sepultamento.
*Bruno é Mestre e Doutor em Psiquiatria pela UFRJ e esteve preso na OBAN em 1971, durante o governo do Presidente Médici.







