Comentava agora há pouco no post de uma amiga o quanto toda essa situação faz pensar na capacidade de um povo de sobreviver em situação de crise de abastecimento. Nossa situação atual é diferente daquela do povo cubano. Lá o país vive um bloqueio econômico cruel já há décadas; é também um país pobre em termos de recursos energéticos. Mesmo com todas essas limitações, os cubanos sobrevivem com dignidade admirável, em parte pela capacidade da população de organizar outros conceitos sobre o que é viver bem. Mas também em boa medida porque há um governo que administra essa situação permanente de racionamento. Por mais críticos que alguns possam ser ao governo cubano, a hora que vivemos seria um bom momento de olhar para a experiência Cubana com mais atenção. Não para copiar qualquer modelo, mas para refletir sobre os modelos de "desenvolvimento" que o Brasil tem adotado há décadas, pautado no livre mercado e na exclusão social ou, no máximo, em uma inclusão via consumo. Como falou minha amiga Raquel VS, que originou esta conversa, até que ponto nossa classe média, mesmo a identificada com a esquerda, estaria disposta a abrir mão de certos confortos e privilégios para construir uma sociedade mais equilibrada em termos distributivos?
Aqui, onde o livre mercado é endeusado por nossas elites, uma mobilização de uma categoria estratégica para a distribuição de bens de consumo, alimentos e energia parou o país. Todos reagem, mas a classe popular reage com desespero. Porque nada lhe garante o seu ganha pão ou seu emprego. Em meio a muita gente desesperada, tem motoboy sem conseguir fazer entrega, vendedor/a que precisa do carro pra distribuir mercadoria, pequenos prestadores de serviços domésticos que sem os veículos não conseguem trabalhar, os motoristas de Uber, etc. De nada adianta assumir uma postura debochada diante das cenas de desespero que assistimos. Ou dizer: “bateram panelas? bem feito!”.
Sei que é um paradoxo ver gente pobre pedindo intervenção militar. Mas vamos pensar bem em toda a tradição autoritária do Brasil. Em pouco mais de 120 anos de República, quantos anos de democracia tivemos? Quantas eleições? E quais foram as experiências concretas de participação popular que esses curtos períodos democráticos proporcionaram? Não acho que tenhamos que ser condescendentes, mas sim compreender toda a lógica que move as atuais reações que temos assistido, especialmente vinda das camadas mais populares.
Em meio a esta também situação também a classe média alta, escolarizada, com uma parcela importante que apoia soluções autoritárias. Essa classe média é movida puro individualismo ou convicção ideológica, crente de que é possível instituir um governo autoritário que não a atingirá. Bem, cada um com suas convicções, mesmo que sejam ilusórias. A história do regime militar mostra o quanto os aparelhos de repressão e censura funcionaram de forma eficiente contra toda a sociedade. Essa mesma história, se estudada com cuidado, já demonstrou que é um erro acreditar que governos militares estejam livres de corrupção. Ao contrário, quando não há processos efetivos de participação popular, quando a imprensa e opositores são calados, abre-se espaço para a elaboração de grandes esquemas de favorecimento de interesses privados. Esquemas que duram décadas e tendem a se perpetuar. Este é tema do livro Estranhas Catedrais, de Pedro Henrique Campos, que examina as relações entre a ditadura civil-militar e as empreiteiras, muitas das quais ainda hoje estão envolvidas em esquemas de corrupção. Ao que tudo indica, estudos como este têm ficado restritos a poucas pessoas. Não temos no Brasil o hábito de discutir esses assuntos de forma pública. Boa parte da imprensa, que deveria cumprir este papel, se limita a análises superficiais dos problemas. Se falam contra a intervenção militar o fazem muito mais como um exercício de retórica do que, de fato, se dispondo a informar a população sobre quais foram os custos sociais do chamado "milagre econômico" e sobre as relações escusas entre militares e a iniciativa privada. Também não há interesse em aproveitar este momento de caos para promover reflexões sobre o modelo energético brasileiro, nem para questionar as razões de sermos um país que vende petróleo bruto e importa gasolina. É mais interessante gastar horas de tv aberta e rádio apenas noticiando o caos.
E nós, da esquerda, o quê fazemos? Publicando memes que digam que Lula, Ciro, Manuela ou Boulos são a solução também não estamos atuando para produzir um falso debate? Não estamos alimentando a ideia de que a solução (mágica?) para esse modelo estaria em um partido ou pessoa? Creio que essa aposta de dizer que há um lado "puro e imaculado" que representa "o lado bom da politica" fracassou rotundamente. Com razão, as pessoas não acreditam mais neste tipo de discurso. Ou somos capazes de superar esse binarismo, nos dispondo a dialogar com a população e compreender outras lógicas possíveis de fazer política, ou vamos abrir mais caminho para saídas irracionais. Com isso não quero dizer que a responsabilidade sobre a atual situação seja dos governos do PT.
Uma afirmação como essa só tem lugar na mesma lógica de pensamento binário que estou criticando. É preciso sim identificar que houve erros nos governos petistas (não encarar de fato a necessidade de outro modelo energético para o país) e acertos (manter a Petrobrás pública e com uma política de regulamentação dos preços do combustível, além de investimentos na exploração de novas fontes de petróleo – pré-sal). Todavia, se o atual governo ilegítimo tem a paternidade da crise, é inegável que a esquerda não apresentou contribuição substancial para rediscutir um outro modelo de sustentabilidade e desenvolvimento, ou, como diz a constituição da Bolívia, de "bem viver". Inspirada na cosmovisão dos povos indígenas, esta carta constitucional substituiu a ideia de desenvolvimento (pautada em uma política de exploração dos recursos e voltada aos interesses privados) pela noção de bem viver. Podíamos começar a conversa com essa pergunta: o que é viver bem? Não existe uma única resposta e nem soluções fáceis. Mas essa conversa tem que começar.
* Natalia Pietra é professora do Departamento de História/UFRGS