Velas na noite de Santiago. 11 de setembro de 2015.
- Paulo de Tarso Riccordi
- 21 de set. de 2015
- 9 min de leitura
A imagem impacta. A noite está muito fria em Santiago do Chile, 1 grau centígrado. Agachadas ou ajoelhadas na calçada de paralelepípedos diante da casona senhorial número 38 da rua Londres, dezenas de pessoas acendem velas e as colocam em torno de plaquinhas de metal afixadas no piso, onde estão gravados nomes, como os de Leopoldo Daniel Muñoz Andrade, 22 anos; Daniel Abraham Reyes Piña, 22 anos; Maria Ines Alvarado Börgel, 21 anos. Há outros mais velhos, mas nem estes passam muito dos 30 anos. São 98 placas e os nomes correspondem aos executados ou mortos em consequência das torturas que sofreram nesta casa e aos oito ainda desaparecidos, dentre os cerca de dois mil detidos que passaram por ali entre 1973 e 1975, onde funcionou um centro clandestino de detenção, tortura, extermínio e desaparecimento de pessoas nos primeiros meses da brutal ditadura comandada por Augusto Pinochet (1973-1990).
A 50 metros dali, na esquina dasruas Londres com Paris, diante da sede do Partido Radical, integrante do governo da Unidade Popular, do presidente Salvador Allende, outro velatón por suas vítimas.
Todos os anos, nessa noite de 11 de setembro, familiares, companheiros sobreviventes, amigos dos mortos e desaparecidos repetem o ritual que, simultaneamente, acontece em vários locais do Chile. Nesse dia, participei do ato no Estádio Nacional, acompanhando um dos coordenadores do Comitê Carlos de Ré Verdade e Justiça, o músico Raul Ellwanger, que naquele terrível ano estava no país como exilado político. Desde a aproximação, não há como evitar rememorar a composição de Pablo Milanés, escrita de uma só sentada após ele saber do assassinato do também músico Victor Jara, sob torturano Ginásio Chile: ..en una hermosaplaza liberada, me detendré a llorar por los ausentes”.Seguindo acentenas de pessoas, dediquei a maior parte da tarde e da noite a fazê-lo, enquanto percorria os sítios de memória preservados no estádio, onde estiveram presos cerca de 20 mil pessoas, entre 11 de setembro e 9 de novembro de 1973, inclusive quase 90 brasileiros, e onde morreu Wanio José de Mattos.
Na arquibancada como torcedor e como preso
Os parentes dos presos, mortos e desaparecidos, seus amigos e companheiros sobreviventes, militantes dos direitos humanos e de partidos progressistas nesta data acorrem ao que um ex-preso e exilado chileno compara a uma peregrinação religiosa. Há nele certo exagero, porque no entorno do estádio o clima está mais para uma grande festa “descomemorativa”, mas, de fato, há locais específicos em que cada um dos presentes sente um nó na garganta e os olhos marejarem: um pedaço da arquibancada norte, no portão 8, e alguns dos vestiários de jogadores, onde foram confinados os presos e presas, preservado como eram nos anos 70, como parte do sítio de memória dos crimes da ditadura ali cometidos. Acima desse setor da arquibancada, uma frase pintada no muro: “Povo sem memória é povo sem futuro”.
O Estádio Nacional (assim como o ginásio Chile) foi transformado em campo de concentração já nas primeiras horas do golpe que derrubou o presidente Allende. As pessoas iam sendo presas num arrastão pelas fábricas, universidades e poblaciones populares – outras caçadas em casa ou no trabalho - e despejadas de veículos militares. Ali era passado um peneirão inicial, separando os presos em setores: na arquibancada norte ficaram os estudantes; os dirigentes partidários, membros do governo, artistas e estrangeiros, nas cabines de imprensa; nas arquibancadas sul e leste, os trabalhadores dos “cordões industriais”. Junto ao alambrado, uma linha de soldados com as metralhadoras apontadas para as arquibancadas. Numa trincheira no centro do gramado, voltadas para cada setor do estádio, metralhadoras ponto 30, cujo projétil atravessa automóveis como se fossem papel.
Justamente ali, na véspera, muitos dos presos haviam assistido ao jogo treino entre a seleção chilena de futebol e uma “seleção do Rio Grande do Sul” integrada somente por jogadores do interior do estado e treinada por Paulo César Lobo, técnico do Grêmio Bagé, numa delegação liderada pelo presidente da Federação Gaúcha de Futebol, Rubens Hoffmeister, que veio a Santiago acompanhado da esposa. Entre os 21.915 torcedores desse jogo, uma das pessoas que assistiram a patética derrota dos gaúchos por 5 x 0 e poucos dias mais tarde voltaram à arquibancada como presos foi o conterrâneo Roberto Heinz Metzger.
Luzes para marcar o caminho da dor
Nesta sexta-feira, à medida que o dia caía, começaram a aparecer as velas. Dezenas, depois centenas, milhares delas, acessas por familiares, por sobreviventes, crianças, jovens (havia muitos deles), idosos. O silêncio e a reverência impactam. Nesse pequeno setor preservado das arquibancadas originais nos sentamos, em silêncio, nos bancos de ripas de madeira com restos descascados de tinta azul, olhando em direção ao gramado, mirando o vazio ou o passado. Noto tristeza, vejo lágrimas. Mas há, também, muitas crianças ainda sem passado, correndo e pulando nos bancos onde avós ficaram dias e noites expostos ao tempo daqueles meses muito chuvosos e frios, com madrugadas em torno ao zero grau centígrado. Dormiam sobre essas mesmas tábuas sob um fiapo de cobertinha que os milicos lhes jogavam à entrada, aproveitando os dias de sol para secar a única roupa que traziam no corpo no momento da prisão, sempre a mesma.
Esperavam a triagem. Checadas as informações preliminares, após um longo tempo alguns se iam, sob emocionado canto uníssono de adeus. Outros iam sendo identificados em listas de procurados, ou apontados por policiais infiltrados nas organizações ou enviados pelos demais países já sob ditadura, como os policiais brasileiros que orientavam os chilenos e participaram das sessões de identificação, tortura e interrogatórios. Os que ficavam nessa peneira, passavam então a “morar” nos vestiários, originalmente destinados a uma equipe de futebol, naqueles meses transformados em celas para 120 pessoas, com dois vasos sanitários entupidos e quatro chuveiros frios. De alimento, café, às vezes pão.
Saíam somente para os interrogatórios. Voltavam com o corpo desmanchado. Às piores atrocidades físicas se acrescentavam os horrorosos rituais de cusparadas e abuso sexual das presas. Alguns foram mortos ali mesmo e seus corpos jogados em diferentes pontos da cidade, para descarte e intimidação. Outros saíram do estádio para os fuzilamentos sobre a ponte do rio Mapocho, onde seus corpos submergiam rumo ao rio Maipo e daí ao sumiço noOceano Pacífico. Uns poucos sobreviventes relataram isso à História, como o brasileiro Luiz Carlos Almeida Vieira.
Há isto, de tirar o ar de quem assiste pela primeira vez a cerimônia do velatón. Pense numa trilha de tochas, margeando o caminho que os presos percorriam desde a saída lateral leste do gramado até dois locais atrás do estádio, onde sabiam que seriam torturados: os caracoles, no velódromo. Mas vale a tarde dedicada a essa peregrinação por locais de dor, guiada por historiadores e pessoas que aqui estiveram presas, para que não se pense abstratamente o que seja a prisão e a tortura.
A lista dos brasileiros presos
Na visita deste ano, em nome do Comitê Carlos de Ré Verdade e Justiça, Raul Ellwanger entregou às coordenações dos sítios Londres 38 Espacio de Memoria, Estádio Nacional Memoria Nacional, Casa de Memoria José Domingo Cañas e ao Museo de la Memoria y los Derechos Humanos a lista dos brasileiros mortos e presos durante o golpe de 1973.
A origem do trabalho é a lista geral de presos no estádio encontrada nos arquivos de Manuel Contreras, o chefe da polícia secreta de Pinochet. Mas era muito incompleta, com troca de nomes ou sobrenomes, omissões, inclusive para encobrir execuções e “desaparecimentos”. A atualização entregue por Ellwanger às entidades chilenas de direitos humanos foi (e ainda está sendo) completada pela informação direta de quem lá esteve, mas não constava na “lista de Contreras”. Na semana passada, mais seis brasileiros confirmaram lá terem estado presos.
Violência continuada, ocultação repetida
Porém, as “descomemorações” do 11 de setembro saltam sobre a possibilidade do lúgubre. Afora a visitação aos locais de prisão e tortura, o próprio entorno do estádio Nacional é tomado pela festa à vida, como já é tradição nessa data. São muitos artistas, chilenos e estrangeiros, a cantar e a dançar as músicas dos folclores nacionais, canções políticas e aquelas que evocam o governo Allende e seu projeto de sociedade solidária. Em dois palcos, no acesso ao setor 8 e ao lado do portão central, se revezaram até a meia noite. Ao mesmo tempo, um grupo folclórico fazia um arrastão carnavalesco entre os assistentes, cantando e dançando entre eles.
Mas, também, as manifestações deste 11 de setembro de 2015 incorporam o presente e denunciam as ações paramilitares ilegais contra as populações pobres das periferias. Tanto no Chile quanto no Brasil, as organizações sociais que buscam verdade e justiça explicitam e denunciam o nexo que há entre a impunidade das ações extralegais das polícias das décadas de 60, 70 e 80 no continente e as de hoje. Tanto os crimes comuns e de lesa humanidade que são cometidos sob a cobertura, senão a proteção, de instituições estatais, quanto o uso que criminosos paraestatais fazem dos meios de comunicação para ocultar os legitimar seus crimes se repetem.
Por exemplo, a imprensa chilena não noticiou os atos organizados pelos partidos políticos e familiares das vítimas da ditadura. Mas deu amplo destaque aos poucos enfrentamentos pontuais na periferia da cidade, em reação à violência e a ação extralegal da polícia (e a imprensa brasileira a ecoou acriticamente). Isto é, a descomemoração pacífica do golpe civil militar que matou milhares de pessoas foi transformada nos meios de comunicação em “este é um dia em que pessoas perigosas produzem violência”. O motorista do ônibus que peguei, de manhã, já me advertira: “Hoje é um dia perigoso para andar por aqui”. Mas nada disso aconteceu “ali” – o Instituto Pedagógico da Universidade do Chile e o Estádio Nacional, onde milhares de pessoas estiveram reunidas pacificamente quase todo o dia.
Por isso, ao lado dos cartazes que ainda perguntam “onde estão?” os desaparecidos dos anos 70, vi cartazes semelhantes (“los muertos en la democracia”) que denunciam a execução de pessoas nas periferias das cidades nos dias de hoje, com a proteção dos meios de comunicação, que aceitam e publicam a histórica mentira do “morto em confronto com a polícia”, mesmo contra as evidências de que houve execução.
O fechamento do campo de concentração
O fechamento do campo de concentração no Estádio de Santiago foi incomum: a seleção de futebol do Chile disputava com a da União Soviética a repescagem para a Copa do Mundo da Alemanha, no ano seguinte. O jogo de ida foi em Moscou, em 26 de setembro de 1973, com empate em zero a zero. O de volta seria em Santiago, em 21 de novembro. E foi esse fato que apressou o fechamento do centro de detenção e tortura. No dia 9 daquele mês, o estádio foi esvaziado, os presos chilenos espalhados por outros centros de tortura e os estrangeiros em breve deportados.
Porém, em protesto contra o golpe militar e à utilização do estádio como campo de concentração, o governo da União Soviética cancelou a ida de sua seleção de futebol ao Chile, por iniciativa dos jogadores. Chegou a propor a realização do jogo em algum outro país do continente, mas a Fifa recusou.
No dia 21 de novembro de 1973, entraram em campo a seleção chilena, o árbitro (o chileno Rafael Ormazábal), os bandeirinhas, os militares, os torcedores convocados. Soou o apito de início do jogo. O capitão Francisco “Chamaco” Valdes tocou a bola para Caszely, que passou para Véliz, este, para Páez, que devolveu para Caszely, que entregou a bola a “Chamaco” Valdes, que chutou para o gol adversário, vazio [http://migre.me/rzMH5]. Como os soviéticos não compareceram, não houve quem reiniciasse o jogo e o juiz o declarou encerrado. A súmula registrou Chile 1 x 0. Foi o “gol de laverguenza”. Foi assim que a União Soviética não foi ao mundial da Alemanha.
Mas teve jogo, sim, naquela tarde. Após sua “classificação”, a seleção chilena permaneceu em
campo e entrou o time do Santos que, sem Pelé, cobrou 30 mil dólares pelo “amistoso” e meteu-lhe
5 x 0.
De volta a La Moneda
Na manhã deste dia 11, a presidenta Michelle Bachelet dirigiu a solenidade no Pátio dos Canhões, no palácio de La Moneda, em homenagem ao presidente Salvador Allende. Entre os presentes esteve a filha dele, Isabel Allende, atual presidente do Partido Socialista.
Naquele mesmo momento, o Centro de Estudos Públicos divulgava os resultados de sua última pesquisa de opinião pública, que dá à presidenta 22% de aprovação. Mas a mesma pesquisa indica que os três políticos de maior aceitação pública no país, virtualmente empatados em 42-41%, são de centro esquerda: o ex-PS Marco Enríquez-Ominami (filho de Miguel Enríquez, fundador do Movimiento de Izquierda Revolucionária, MIR, assassinado pela ditadura em 1974), a própria Isabel Allende e o ex-presidente Ricardo Lagos, também originário do PS – herdeiros vivos de tudo o que a barbárie da ditadura de Pinochet tentou, infrutiferamente, apagar da História.
Nestas manhãs, na Praça da Constituição, em frente ao palácio La Moneda, muita gente se fotografava diante da estátua do presidente Allende, onde professores e guias turísticos recontavam a estudantes e estrangeiros a saga de quem desejou implantar o socialismo através das urnas.
E volto a ouvir a voz de Pablo Milanés:
“Un niño jugará en una alameda
Y cantará con sus amigos nuevos
Y ese canto será el canto del suelo
A una vida segada en La Moneda”.