O site The Intercept Brasil publicou nessa segunda-feira (27/1) uma reportagem sobre a diarista aposentada Marilza Barbosa, que depois de anos trabalhando como doméstica, se formou em serviço social e compartilha as informações que aprendeu como uma obrigação. “Assim que comecei a me ver como uma cidadã, percebi que meus vizinhos, minhas colegas, não tinham esse conhecimento”, diz. Hoje, além do trabalho no Morro do Sossego, ela integra a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense e a Frente Estadual pelo Desencarceramento. Na reportagem, Juliana Gonçalves relata como conheceu Marilza. "Eu a conheci há um ano, em uma atividade do meu coletivo, o Minas da Baixada, e vi na fala dela mais sabedoria do que muito do que costumo ouvir de acadêmicos ou mesmo das pessoas que entrevistamos até agora no Saídas à esquerda. Se queremos encontrar saídas de fato, é hora de ouvir o que dizem pessoas como Marilza, que trata de direitos humanos em uma das áreas mais pobres do Rio, e que conta com a presença histórica de grupos de extermínio", indaga Juliana, que atua como jornalista, social media e pesquisadora desde 2008 com foco em direitos humanos. Ela faz parte do coletivo Minas da Baixada, mas já trabalhou em agências de comunicação, projetos de comunicação comunitária, no site Catraca Livre e na Rede Globo. Atualmente, Juliana Gonçalves, mestranda em Políticas Públicas em Direitos Humanos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, graduada em Jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com especialização em Comunicação e Imagem na Pontifícia Universidade Católica do Rio.
Leia a matéria de Juliana Gonçalves e veja o vídeo:
Foto: Luiza Drable/The Intercept Brasil
“É NORMAL você ter água na torneira na casa da família em que trabalha e não ter na sua casa?”, questiona a diarista aposentada e hoje ativista Marilza Barbosa, de 56 anos. Com perguntas como essa, ela consegue dialogar com seus vizinhos do Morro do Sossego, uma das áreas mais pobres de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e falar sobre questões sensíveis que de outra forma não receberiam um segundo olhar dos moradores.
Eu a conheci há um ano, em uma atividade do meu coletivo, o Minas da Baixada, e vi na fala dela mais sabedoria do que muito do que costumo ouvir de acadêmicos ou mesmo das pessoas que entrevistamos até agora no Saídas à esquerda. Se queremos encontrar saídas de fato, é hora de ouvir o que dizem pessoas como Marilza, que trata de direitos humanos em uma das áreas mais pobres do Rio, e que conta com a presença histórica de grupos de extermínio.
O local ainda respira o coronelismo e está cercado por disputas de tráfico e milícia. Nessa mesma região, terreiros são depredados semana sim, semana também e candidatos de extrema-direita como o presidente Jair Bolsonaro e o governador do Rio Wilson Witzel, que pregam o “bandido bom é bandido morto”, ganharam com folga nas últimas eleições.
Depois de anos trabalhando como doméstica, Marilza se formou em serviço social e vê compartilhar as informações que aprendeu como uma obrigação. “Assim que comecei a me ver como uma cidadã, percebi que meus vizinhos, minhas colegas, não tinham esse conhecimento”, diz. Hoje, além do trabalho no Morro do Sossego, ela integra a Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência de Estado na Baixada Fluminense e a Frente Estadual pelo Desencarceramento.
Por meio de pequenas ações como ajudar moradores a saberem a quem recorrer em casos de problemas com a aposentadoria – o que teóricos chamariam de “micropolítica” e “trabalho de base” e que tanta gente gosta de dizer que foi o que faltou nas eleições –, ela conscientiza os moradores na luta contra o inaceitável e critica quem acredita que o problema é ser de direita ou esquerda. “A gente tem entendimento de que é só trabalhador. Só mão de obra. A gente não consegue se ver nesse papel de cidadão. A população não sabe o que é de esquerda ou direita. Ela precisa saber que a luta pelo equipamento público é de todos os lados”, explica.
A diarista aposentada tem como principal missão conscientizar seus vizinhos sobre os seus direitos enquanto cidadãos – e já não acredita que candidato X ou Y seja capaz de mudar sozinho a situação que vivemos.
Enquanto caminhávamos pelas ruas do Morro do Sossego, passamos por ao menos cinco igrejas evangélicas – número que, segundo Marilza, não para de crescer –, um terreiro e uma igreja católica. Entre uma parada e outra para falar com um vizinho, conversamos sobre política, religião e direitos humanos. Apesar do quadro cruel da região e da distância dos olhos e dos bolsos do poder público, a Baixada em que está o Morro do Sossego de Marilza também é um lugar de efervescência cultural. E merece mais. “O problema não é morar no morro. É a política pública não chegar no morro”.
Confira os principais trechos da entrevista:
Intercept – Você atua como ativista em uma região da Baixada que, além de tráfico e milícia, também é tomada por grupos de extermínio. Como é o seu trabalho no Morro do Sossego?
Marilza Barbosa – Não acho que é um trabalho, mas um diálogo. Assim que comecei a entender que eu era uma cidadã, percebi que meus vizinhos e minhas colegas não tinham esse conhecimento, e achei importante multiplicar, compartilhar isso com eles. Por exemplo, explicar o que é o Bolsa Família e quem tem acesso, porque muita gente falava assim: “Ah, eu não tenho esse direito”. Questiono se é normal você não ter acesso à saúde, pagar uma consulta para ser consultado mais rápido, porque você espera um tempão para conseguir um atendimento… Pela extensão do nosso bairro e pela quantidade de pessoas que moram aqui, a gente precisa ter uma creche. Não é normal eu ter que deixar meu filho na casa da vizinha. É no bate-papo mesmo, na conversa do dia-a-dia. Dou o acesso [à informação] e pesquiso os meios. A pessoa quer dar entrada na aposentadoria ou no auxílio doença e não sabe como. Eu pego os dados e ligo para o 135 com a pessoa do lado. Ou, se a pessoa precisa ir ao Cras, explico onde é. O Cras que atende o segundo distrito, por exemplo, é o do Pilar [a cerca de 40 minutos de distância de ônibus do local]. Minha preocupação principal é como essa pessoa vai. Para você sair daqui do Morro do Sossego para ir ao Cras do Pilar, vai gastar R$ 16 de ida e volta. E se ela precisar voltar depois outro dia, ela não vai voltar.
Você vê o que você faz aqui no Morro do Sossego como política? Podemos chamar esse trabalho de política de base?
Entendo a política como todo o movimento de você entender e conhecer seus direitos – o que a maioria aqui não conhece – e ver os caminhos para cobrar as pessoas que estão nos representando. Falo muito de a gente não ter um político ou um partido de estimação, porque se eles estão lá, é para nos representar, independentemente do partido. Fazer política, para mim, é todo esse movimento de cobrança. Entender que você tem direito àquilo, o que é violação e que você tem que reivindicar. Então, é um movimento de conversar com os moradores sobre o que nós podemos reivindicar organizados. Sou moradora do Morro do Sossego e não acho normal não termos acesso à política pública, viver dessa forma. Só trabalhar, gerar renda e estar excluído. Eu só ouvi falar de política de base nas últimas eleições, e não me sentia fazendo política de base, porque eu moro aqui, sempre morei.
Como você vê essa ideia repercutida depois do resultado das eleições de que a vitória de Bolsonaro e do governador do Rio Wilson Witzel, entre outros candidatos de extrema-direita, está ligada à falta do trabalho de base?
Vi essas teorias. Mas aqui não chegou investimento em saúde, em educação, em políticas públicas, em lazer, em acesso à cultura – muitas crianças aqui sequer sabem o que que é um cinema, nunca foram ao teatro. Muitas mal vão a Caxias [o Morro do Sossego fica na periferia da cidade], quando vão é para a UPA. Mas chegaram as igrejas evangélicas, com um investimento muito grande para essa população. Essas pessoas viram as igrejas como fuga mesmo. E tem todo o contexto do sistema neoliberal. Quando vem toda aquela propaganda de ‘você poder ter várias coisas’ para uma população que acabou endividada porque estudou, investiu – como eu investi no meu filho e ele não conseguiu acessar o mercado de trabalho de uma forma que melhorasse a condição dele –, essa população se vê sem saída. Quando se levanta um candidato apoiado pelo pastor, como essas igrejas são espaços que deram um pouco de esperança, cria-se um cenário ideal. E aí eu não consigo dizer se é um cenário de direita e de esquerda, é um cenário de desesperança.Também tem toda uma dificuldade de lidar com a diversidade. Aí vem todas as fake news, como a história de que a escola está ensinando a criança a questão da sexualidade. Usaram muitas coisas para deturpar o que é ensinar. E os espaços em que a gente ainda consegue dialogar melhor são com os professores de escola pública.
Aqui em Duque de Caxias e na região do Morro do Sossego, Witzel e Bolsonaro foram os mais votados. Como foi o seu trabalho durante a campanha eleitoral?
Meu trabalho foi sempre o de me manter posicionada e falar sobre o extermínio da juventude, da população. Mas fui percebendo que, pela cultura do local, a população se sentiu contemplada [com os candidatos]. Eles falaram a linguagem dessas pessoas, como quando o Witzel falou em “atirar na cabecinha”. Aqui isso sempre foi normal. Se um menino comete um furto, rouba um calçado, uma roupa, ou se ele estiver usando drogas, ele tem que ser expulso, tem que ser assassinado. É uma cultura do local. É uma cultura da Baixada Fluminense. Não fui para o enfrentamento. Eu não podia me posicionar como sendo de esquerda ou direita, se eu sempre tive a clareza de que eles não nos deram base. Eu lembro que a Dilma veio com toda a comitiva dela inaugurar o Minha Casa Minha Vida aqui. Achei um absurdo aquele investimento, aqueles carrões passando. Essas pessoas vêm, inauguram um negócio e vão embora. Então, não fiz um diálogo partidário nem de oposição. Fiz uma conversa de cidadã. As pessoas, já me conhecendo, diziam assim: “Olha eu vou votar no Bolsonaro, tá, Marilzinha?”. Eu respondia: “Olha, estamos livres, liberdade de escolha”. Questionava se achavam normal a gente não ter acesso à saúde, à educação. Votar no Bolsonaro, Witzel ou no Haddad não soluciona o nosso problema. Você vai cobrar? Vai para o gabinete? A gente precisa ocupar a Câmara Municipal de Duque de Caxias, se reunir e procurar ver o que está acontecendo, o que está sendo votado. Isso é mais interessante para a gente. A minha questão não é quem vai estar lá, mas como nós olhamos. Essa “cabecinha” é nossa, da nossa população pobre, preta, periférica. Eu vou votar em quem eu quiser, como você também tem o direito, mas eu faço o movimento de cobrar. Eu não me via ali naquele momento com opção, mas eu sabia que no Bolsonaro e no Witzel eu não votaria.
Foto: Luiza Drable/The Intercept Brasil
Você acha que esse cenário que você narrou agora é o que levou à eleição de governos autoritários tanto aqui no Rio quanto no resto do país?
Sim, sim. Isso veio se configurando. Muitas igrejas novas foram construídas e muitos moradores que não têm acesso ao conhecimento crítico começaram a frequentar esses espaços. Com o discurso do “pare de sofrer”, as pessoas falavam, “olha, todo mundo vai votar em quem o pastor mandar”. [Na periferia] o pastor passa a ser um deus. Ele é uma pessoa que é ouvida. Mas eu também resgato muito o contexto. A faculdade me apresentou uma Caxias que eu não conhecia. Fiz um estágio no lixão. Era sofrido demais. A gente corria de bala para entrar no lixão. Tinha estratégia, rotas para poder ir até lá, e eu pensava: “eu também não ia querer isso para mim”. Esse lugar precisa ser transformado, precisamos lutar para transformar. A gente precisa chegar de fato nesses espaços. Falar com a população que está vivendo dessa forma. Essas pessoas procuram um salvador, sabe. Pô, se até hoje não chegou ninguém… Muita gente aqui já votou no Lula. O Lula era meu herói. Eu acompanhava aquele cara nas lutas, nos movimentos. Depois de eleito ele já não foi mais meu herói. Não quero ninguém condicionado no comodismo de uma miséria. Não via chegar nada aqui, que representa diversos espaços da Baixada Fluminense.
Você trouxe para o Morro do Sossego um evento para falar sobre racismo contra religiões de matriz africana. Como que você dialoga sobre isso dentro de um território dominado por igrejas evangélicas?
Eu bati na porta da igreja católica e dos terreiros para conversar. Eles ficaram receosos e não quiseram participar. Mas o pessoal da igreja evangélica veio para a conversa, ainda que não entendendo o que é racismo. Percebi que muitas pessoas primeiro não sabem o que é racismo, não se identificam como pessoas que sofrem o racismo, e nem que ele existe. É um discurso que está muito longe daqui. Religioso então, piorou. Pedi ajuda de pessoas de fora e fizemos uma roda de conversa. Ali eles começaram a perceber como se dava esse racismo. Depois fizemos um outro evento. Escolhi o Centenário, e a gente falou de novo sobre racismo religioso. Dessa vez conseguimos unir uma mãe de santo – a Mãe Conceição, que teve o terreiro oito vezes atacado –, um padre e pastores progressistas e fundamentalistas. Vamos seguir batendo nesse tema, mas é um tema que precisa ser falado dentro desse território devagarinho. Depois do evento, muitas pessoas me chamaram para falar que não era necessário falar sobre racismo e sobre racismo religioso, porque não há problema de convivência. Não tem esse entendimento de que existem outras religiões, outras culturas e que a gente precisa conhecer também. [A religião] é também um meio de proteção, porque aqui nós não temos outra coisa. Ou você vai pra igreja ou você vai para o bar. Para uma mãe, um pai, uma família, quando o jovem entra no espaço da igreja ele está protegido. Também é uma dinâmica de você não ter ninguém, mas ter Deus. No fim das contas, foi o que determinou as eleições do ano passado: os pastores fazendo a campanha, e uma campanha moralista, conservadora, com todas as fake news. O desafio foi todo dia conversar com o morador sobre o que ele pensava e ele dizer “não, mas esse outro grupo…” Chegava uma mensagem para ele e ele acreditava. Isso foi muito cruel.
Como você lida com essa articulação política?
O vereador que foi eleito pelo bairro é sempre convidado para participar das atividades. Assim como eu convido os pastores, os pais e mães de santo, sempre deixando claro que o intuito da mobilização é a transformação, que eu entendo que é a função do vereador e o papel do prefeito. Que não dá para achar que a gente vai eleger um vereador e ele tem sozinho o poder de mudar o território, mas que a gente pode ir até ele como canal para que ele faça as reivindicações.
Os eventos que você faz quase sempre lotam. Como você trabalha para levar os moradores do morro para debates sobre raça, gênero e periferia?
A partir do momento que fiz essa primeira roda de conversa [com os religiosos], parte dos 21 dias de ativismo contra o racismo, começou um burburinho. Muita gente queria falar, mas nunca viu ninguém falando sobre esses assuntos aqui. Formei uma rede com pessoas da Baixada que estão fazendo alguma coisa, como as Minas da Baixada, a Roda de Mulheres, Ana Leoni da Unegro de Caxias, e fui fortalecendo as atividades deles e chamando para fortalecer aqui. É sempre uma ação coletiva. Os convidados sempre são essas pessoas que estão atuando no território. Como a Juliana Maia, do projeto cultural Família Lanatampa, que começou uma roda de hip hop na Praça do Sossego sofrendo toda a resistência. A gente nem sabia o que era o movimento hip hop. Nunca ouviu falar, porque só tínhamos pagode ou culto na nossa praça. Na última atividade, “Gênero, raça e periferia”, por exemplo, a gente teve uma moradora que fez um depoimento sobre o que ela estava passando. Através da fala dela, diversas mulheres se abriram. Apesar de termos índices altíssimos de violência doméstica, essa é uma pauta muito difícil devido a essa predominância do fundamentalismo das igrejas evangélicas no território.
O que você acha dos teóricos que tentam explicar o que acontece na periferia?
Não me sinto representada por essas pessoas. Aliás, eu não me sinto representada em boa parte dos espaços a que eu vou. É tudo muito distante. Me dá um incômodo muito grande. Tenho ouvido falar muito em uma palavra difícil, necropolítica. Uma amiga até me mandou um texto do Achile [Mbembe, filósofo que criou o conceito], achei interessante. Mas quando ela me apresentou eu falei assim: “gente, essa necropolítica não é o que eles têm feito com a gente há muitos anos?”. Que bom que ele está falando da nossa realidade, mas a gente tem muito o que construir. Precisamos ouvir e conhecer a nossa história. A gente está no Morro do Sossego!
O que você faz aqui no Morro do Sossego está relacionado diretamente com os direitos humanos. Hoje tudo que está ligado a isso é visto como coisa de esquerda, e algumas pessoas criam certa resistência. Como é falar de direitos humanos na Baixada, no Morro do Sossego?
Primeiro é desconstruir, falar da questão a partir do senso comum. Conversar com os moradores o que eles entendem como direitos humanos. E, a partir daí, começar a mostrar o que são de fato os direitos humanos. Mas sempre primeiro entendendo como eles vêem, e não pensando “porque eu aprendi e ele também tem que entender”. É preciso aproveitar esse bom relacionamento no bairro. E aí já que a gente fala sobre várias coisas, ao invés de fazer fofoca, a gente fala sobre os direitos.
Dentro desses diálogos, alguém pergunta se você é de esquerda? Você fala sobre isso com as pessoas?
Não, mas automaticamente no bairro já se tem o discurso de que é direita ou é de esquerda. Mas é uma reprodução, não um entendimento. De extremista, de bolsominion. É um ataque muito via rede social. A Baixada tem diversas páginas que falam diretamente dos bairros e das comunidades. Elas trazem o cenário da violência, mas muitas já são tendenciosas e reproduzem a visão de um partido. A gente tem, por exemplo, uma predominância do MBL aqui. Esse território é um curral eleitoral. Sempre foi. Um espaço que muitos candidatos visitam exatamente no período de eleição para fazer campanha. E muitos moradores e comerciantes apoiam. Eu vou apoiar o candidato tal, que vai vir aqui um dia, tirar uma foto e depois nunca mais voltar.
Como você enxerga a política que é feita na região e como é o seu relacionamento com os políticos que vêm aqui em época de campanha?
A maioria dos moradores tem essa vida de sair cedo para trabalhar e chegar só à noite. Acaba que a gente via o cenário político melhor só no dia da eleição. É quando as pessoas começam a passar de porta em porta pedindo para pendurar lá um bannerzinho. Por exemplo, na minha casa eu nunca gostei que colocassem. Nunca quis que a minha casa representasse político nenhum. Tenho um bom relacionamento com os candidatos que se levantam para concorrer no bairro, mas nunca levantei uma bandeira. Entre votar numa pessoa que nunca veio aqui e uma que mora aqui, a gente vota no que mora aqui. Mas também precisamos avaliar quem são essas pessoas. Se elas nos representam ou não. E acompanhar, porque acho que o principal do processo é o depois. Essa pessoa é eleita e você precisa acompanhar a trajetória dela.
Questionam se você é ligada a algum partido político?
Não, mas questionam se eu faço uma campanha contra. Qual é a minha função, se eu tenho interesse em ser uma candidata… Porque temos um cenário em que muitas pessoas que fazem algo no bairro se candidatam logo depois. Essa “tradição” gera uma insegurança nos moradores.
O que você acha que pode gerar uma mudança no cenário que você descreveu na Baixada, no Morro do Sossego e nas outras periferias?
A compreensão do que são de fato direitos humanos. Do que é o teu direito como cidadão, mas também da pessoa se reconhecer como cidadão. A gente se entende como trabalhador. Só a massa, né? Só mesmo aquela mão de obra. E o processo da maioria é isso. Você vai lá, trabalha e sobrevive. Quando a gente fala dessa minoria, na verdade a gente está falando da maioria que somos nós população preta, pobre e periférica. Mas a gente não consegue se ver nesse papel. Nossa representação é um modelo que foi posto. A gente precisa entender as coisas e não apenas reproduzir porque viu na internet. Não adianta, como eu falei, trazer um termo rebuscado [como necropolítica], sabe? As pessoas não têm nem noção do que se trata aquilo.
Mas como a gente sai da situação em que está hoje?
É muito um trabalho de conversarmos dentro dos territórios sobre os nossos direitos e do poder que nós temos. Precisamos partir desse reconhecimento do poder que nós temos enquanto cidadão e dentro de uma coletividade. Essa mudança também pela transferência de conhecimento. Não adianta eu ter ido para a universidade, ter conhecimento e guardar ele para mim. Esse conhecimento não é para uma ascensão social. Quando eu fiz a minha casa eu pensei, “cara, que bom seria se todo mundo tivesse uma casa decente”. Porque é direito seu. É preciso ter essa compreensão e dialogar com a população o tempo todo sobre isso. Até esse movimento ficar tão forte que a gente consiga se unir e pressionar quem está lá no poder.