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Vida e morte do Doutor Araguaia, por Bruno Mendonça Costa*

Atualizado: 8 de nov. de 2024

Convivi com o João Carlos na política universitária, ele como Presidente do Centro Acadêmico Sarmento Leite e eu como Presidente da FEURGS (o antecessor do DCE). Alto, magro, sempre de óculos, muito sério, comedido, ponderado, consciente de seu papel político. Foi preso ainda como estudante, por ser Presidente do C. A., e depois, muitas vezes, já como médico de uma Residência na Santa Casa. Sofreu várias prisões de curta duração, como estudante e depois como Residente e, portanto, médico formado no caminho de uma especialidade. Estava numa enfermaria de grandes nomes de nossa medicina na época, onde, muito estudioso, era querido e admirado por todos, mestres, enfermagem e pacientes. Sem dúvida, iria se destacar como um excelente profissional. Pouco comentava sobre as prisões sofridas. O capitão era sempre o mesmo interrogador, não cansava de repetir perguntas que já fizera antes. Suas respostas eram também sempre as mesmas: as reuniões dançantes nos sábados, excelentes, as palestras e cursos de médicos conhecidos, promovidos pelo C. A., as reuniões do C. A. com a FEURGS e com colegas de outras faculdades, o ambiente democrático e alegre entre os colegas. Sobre o que era a “luta e a greve por um terço, respondia claramente que a UNE preconizava um aumento da representação dos universitários nos órgãos colegiados das faculdades e da Universidade. Exemplificava para melhor compreensão do capitão: no Conselho Universitário da Universidade a FEURGS, que representava todos os centros acadêmicos, deveria ter o direito de apresentar-se com cinco colegas, quando na época o número de professores era de 15, e não somente com um, o Presidente da FEURGS. E assim o mesmo critério proporcional deveria acontecer nas faculdades. Ao ser perguntado sobre a presença de comunistas no meio universitário, respondia que não era de seu conhecimento e não sabia nomes como insistia o capitão. Era liberado, voltava para sua Residência na S. Casa, contava discretamente alguma coisa aos colegas sobre o interrogatório, informava sobre o nível de tensão maior a cada pequena prisão e acreditava que o capitão, frustrado em sua “missão”, acabaria transferindo-o para a DOPS, como já acontecia com tantos companheiros de esquerda. Falou a respeito com sua noiva, com outros colegas, preparou seus familiares pela notícia que teriam sobre novas prisões, mas já estava cansado delas e com a má repercussão psicológica para ele próprio e para suas relações profissionais e de amizade.

Pois cansou de ser preso, e sempre pelo mesmo oficial. Era um prisioneiro do capitão. Ele o retirava da S. Casa discretamente, levava-o para o quartel, não usava de violência, não o ameaçava fisicamente. Compreendeu que a finalidade era esta mesmo, a tortura psicológica. Passou a comentar com os colegas a situação e afirmava discretamente que o capitão estava conseguindo o objetivo que havia planejado, pois não conseguia retirá-lo de sua cabeça e se sentia diariamente ameaçado de uma nova e curta prisão.

Compreendeu que o propósito do capitão era principalmente desmoralizar, desgastar, humilhar o jovem rebelde, quebrar sua firmeza de conduta e obter nomes de companheiros para também serem presos. Afirmou aos colegas que jamais seria conhecido como um “dedo duro” e o capitão não obteria dele nem mesmo a “confissão” de que era “subversivo e comunista”. Quando chegava neste ponto dos interrogatórios, mostrava-se quase que como um alienado na política geral, não conhecia comunistas e nem outros que estivessem contra a ditadura. Era mais uma frustração para o jovem capitão que dava a entender que o conduziria para outros interrogadores.

De repente desapareceu. Ninguém sabia o que havia acontecido com o João Carlos. Até que a Folha de S. P. publicou uma matéria comunicando que brasileiros haviam  treinado guerrilha na China e teriam retornado ao Brasil. Lá estavam as fotos. Um deles era o João Carlos. Todos, então, compreenderam o seu “desaparecimento”. No mundo de silêncio em que se vivia ao tempo da ditadura, sabia-se, porém, que o PCdoB estava preparando uma guerrilha. Ora, só poderia ser em algum local de pouca população, próximo ou dentro da floresta amazônica. Algumas notícias escapavam e dizia-se que o planejamento atingia uma grande área, por onde os guerrilheiros se espalhavam. Encontravam-se na mata de alguma maneira em locais previamente preparados, treinavam os modos de lutar da guerrilha, recebiam armas e munições que chegavam por vias tortuosas sob o comando do Partido. A concepção da luta era diferente daquela do “foco” e sim de algo parecido com o que fora realizado na China, a “guerra popular”. Portanto, os guerrilheiros conviviam com a população de uma forma normal e na medida do possível iam aumentando o contingente de lutadores com os habitantes locais confiáveis e que se motivavam para a luta. Só a fase de preparo já havia consumido cerca de 5 anos. O Doutor Araguaia conquistou a amizade e o carinho daquele povo, exercendo sua profissão de médico. Somente poucos, os de confiança, é que sabiam do desempenho também de guerrilheiro daquele dedicado doutor. O inevitável aconteceu. Houve traições, prisões de gente do povo, torturas, descobertas iniciais da “área de inteligência” pelos militares. Os guerrilheiros estavam descobertos. Depois surgiram pequenos combates com contingentes reduzidos de militares por duas vezes e com algum sucesso por parte dos guerrilheiros. Houve uma calmaria durante algum tempo, seguida depois de um preparo colossal de armas, homens, helicópteros, lança-chamas, e tudo que fosse necessário para derrotar os guerrilheiros. O movimento deveria ser totalmente sufocado até o último homem. E isso de fato aconteceu. O território da guerrilha era bastante grande, mas a inteligência militar já havia mapeado tudo, alguns já haviam sido presos, camponeses que aderiram à luta forneceram informações e só poucos guerrilheiros sobreviveram. Diz-se que na guerrilha do Araguaia morreram homens com grande ideal, que permaneceriam na memória daquele povo sofrido como bravos lutadores. Conta-se que seria impossível aos guerrilheiros resistirem, tal a quantidade imensamente maior de militares mobilizados para combater um número relativamente pequeno de guerrilheiros. Alguns sobreviveram, poucos. Contam que a maioria morreu heroicamente, abrindo fogo com suas metralhadores contra um inimigo forte e bem armado. Dois deles, mais conhecedores dos caminhos da mata, conseguiram fugir e retornar a São Paulo. Bem que seria interessante ouvir deles a proeza de conseguir escapar daquele inferno, enfrentando a floresta, cruzar rios caudalosos e continuarem vivos. Um outro, de sobrenome Brum, permaneceu preso por 1 ano numa base militar. Num determinado dia foi levado à força por oficiais para um helicóptero e jogado em algum lugar da floresta amazônica, como conta sua sobrinha em livro famoso no RGS.

O Doutor Araguaia foi um dos mortos. Contam que ele foi cercado, não se entregou e disparou sua metralhadora contra os que o perseguiam. Incrível. É difícil imaginar como que uma elevada consciência política transforma uma pessoa.  Era um outro João Carlos. Um gigante na luta contra a ditadura. Desde que tomara a decisão de ir para a região, seu nível político crescera muito e atingira um ideal superior de luta contra a ditadura daquela forma e talvez influenciar nos rumos políticos a partir dali. É algo tão nobre e tão engrandecido que produziu a magia de ser admirado e homenageado por todos, aplaudido por seu idealismo, popular na região da guerrilha e depois na sua cidade, São Leopoldo, e recordado por mim e por outros colegas que com ele conviveram, com um respeito e uma admiração superiores, que se presta somente a um grande herói de um país como o nosso. Pessoas assim não morrem. Por isso, termino dizendo: viva o Doutor Araguaia, seu exemplo de luta não será esquecido nunca.

 

Dr. Bruno Mendonça Costa. Médico psiquiatra, professor universitário aposentado, doutor em psiquiatria pela UFRJ.  

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