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UM CRIME NÃO ESCLARECIDO

Foto do escritor: Alexandre CostaAlexandre Costa

(*) Vinicius Galeazzi

Vem cá, entra aqui em casa, vem cá, se fosse tu, o que tu fazia? tu falava do traficante morto, do ônibus queimado, que a polícia entrou vila a dentro atirando? tu falava, pros jornalista? eu vivo aqui, meus filho, meus neto vive aqui, saem todos os dias pro trabalho, com quem é que eles passam quando saem daqui? acha que eu vou dizer o quê? não é ele, o jornalista, que tá aqui pra ver, de repente aparecer meu neto aleijado, olho furado, o que tu acha? vou entregar um fiadaputa desses, pro jornal, botam meu nome lá que eu disse isso e aquilo, bá, no mesmo dia, me penduram. Tá lá o João Bocudo atirado no chão, a polícia apareceu atirando, na entrada da vila, eles revidaram, não pensem que a polícia é santinha, não, porque que eles apareceram atirando, aqui na ladeira, tu tá louco, vieram descendo atirando, as casas todas com criança em casa, gente saindo e voltando do trabalho, claro que todo mundo se esconde quando ouvem o primeiro tiro, essas casas tudo de madeira, nas de material as pessoa ficam mais protegida, mais atenta, nas de madeira se encolhem no canto mais longe. Vai perguntar pra polícia por que eles vieram hoje aqui desse jeito, acha que eles não sabem que tem essa boca aí na entrada da vila, faz tempo? acha que não sabem? aqui nóis somo umas seiscentas família, tudo trabalhador, os filhos vão pro colégio, as mulheres vão fazer faxina e comida nas casas, os estudante volta onze da noite, passam por eles, no outro dia cedo tão indo pro serviço. Chamam aqui de Buraco Quente, baita desrespeito pra toda essa gente trabalhadeira, que rala o ano inteiro, honesta, tem filho, só veio morar aqui porque foi onde achou onde morar. Por causa de uns dez, doze, nem sei, uns quinze decerto que ficam vendendo essas merda aí, faz um ano ou mais que se meteram aí, nem sei, melhor é não se atracar com eles e saber o menos possível quem são, a gente leva esse nome, eles do jornal dão esse nome de merda pra vila, Buraco Quente é o cu da mãe deles, esses desgraçados. O jornal podia ajudar, por que que não vão lá no chefe de polícia perguntar lá pra ele? por que veio atacar esses fiadaputa só hoje desse jeito absurdo? podia querer saber a verdade, a verdade mesmo, os jornal podia mostrar a verdade, porque eles sabem que esses caras estão aqui já faz tempo, por que só agora, de repente, sem se organizar direito, vieram atirando feito louco, ladeira abaixo, a vila cheia de gente. Não pense que estou a favor dos bandidos. Nem a favor deles, nem da polícia, tá lá o João Bocudo no chão do beco, atirado no chão, caído no valo de merda, quem é que vai juntar? assim, desse jeito, desse jeito que aconteceu, foi um assassinato, nem parece que a polícia tem chefe, tem gente e setor de informação, mataram, mataram como quem mata um bicho. Mataram e agora não assumem, não mandaram buscar o corpo ainda, acho que nem vão vir, têm medo de entrar, nem sei como vai ser, um assassinato não justificado, porque são burro, ou porque é vingança, vai ver que esse João Bocudo acertou as contas com alguém da polícia, ou não acertou as contas, se estranharam, ele nem é daqui, vieram correndo atrás dele e ele se meteu aqui. Acho que veio de outra boca fugido pra cá, entrou vila adentro, os caras da polícia vieram atrás, sei lá, foi uma coisa raivosa, muito forte de desavença, entraram atirando, desceram a ladeira atirando, casa dos dois lados, cheio de gente nas casas, uma loucura, entraram de camburão aqui pra dentro, era cedo ainda, umas onze horas, tu tá louco, o João Bocudo se enfiou pelo primeiro beco que achou. Coitada da Dona Vanda, entrou na casa dela, coitada da véinha me contou chorando, ele pulou a janela dos fundo, atravessou o pátio da outra casa, quando saiu no outro beco, a polícia tava lá. Dizem que foi doze tiro, eu fui lá ver. Tava feio. Um crime, a polícia não podia fazer isso assim. Vou dizer isso pro jornalista? ele vai botar no jornal dele que eu sou a favor dos bandidos da droga, não sou por eles, nem concordo com a polícia, esse assassinato vai ficar não esclarecido mesmo, porque o jornal não vai dizer a verdade do jeito que a polícia entrou aqui, nem o porquê dessa ação violenta, e nóis aqui no meio de tudo isso, escudo de bandido, buraco cu da mãe deles, nem tem mesmo o que dizer. Isso foi tudo de noite, nem sei meu Deus como é que a vida da vila recomeça no outro dia de manhã, as crianças saem pro colégio rindo brincando, os homens e mulheres pro trabalho, parece que nada aconteceu e que isso já é da vida de nóis, de todos nóis que não temo outro lugar onde viver, sem que tenha junto bandido vendendo merda pros filho dos dono dos jornal. Pros jornal depois não ir perguntar onde deveria perguntar, por que que não tem lugar decente pros trabalhador morar? que estamos aqui, sem documento da casa e da terra, correndo esgoto e água servida pelos becos, água clandestina que nóis mesmo demos um jeito de engatar no cano geral lá de cima do armazém, da luz gato de gato, olha esse monte de fio se cruzando nos poste da ladeira, nos beco, acha que a CEEE não sabe? daqui uns dia dá um incêndio desses fio tudo. Os jornal tinha que ir perguntar lá pro governo, por que não tem um lugar pra gente morar direito, a gente paga, a gente quer pagar, quer trabalhar para viver e pagar. Deixar a gente morar aqui isso sim é que é um crime.


(07/09/2020)


*Vinicius Galeazzi, 74, engenheiro civil, Porto Alegre

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