TRAGÉDIA EM QUATRO ATOS - ATO IV – FAMÍLIA (BASEADA EM FATOS REAIS), PAULO GAIGER(*)
- Alexandre Costa
- 10 de jun. de 2022
- 3 min de leitura
Atualizado: 12 de jun. de 2022

Eu admiro o Dr. Nunes. Não tem frescura. Tinha que ter um Dr. Nunes em cada repartição pública, em cada legislativo, fórum, delegacia. No Ibama, na Funai, na Polícia Federal. A propósito, o Ibama e a Funai já tinham que estar nas mãos do Dr. Nunes. Só dessa maneira para acabar com os empecilhos para ampliar as pastagens, a criação de gado, o desmatamento e expulsar essa gente preguiçosa e com as vergonhas à mostra que o pessoalzinho da esquerda chama ridiculamente de comunidades indígenas. Tudo chinês importado. Agora tão cobrando o sumiço desses vagabundos, um tal de Dom Phillips, isso é nome de radinho, e o defensor de gente pelada, um comunistinha chamado Bruno Pereira. A Amazônia é do Brasil... e do Elon Musk, que é dos nossos. Dr. Nunes, pau neles, queima os dois em nome de Jesus. Os mandões do Brasil colônia conseguiram escravizar os negros, mas não exterminaram todos os índios. Portuguesada incompetente. Não tinham um Dr. Nunes para ensinar como se faz. Agora são tempos de desenvolvimento, de investimentos, de dinheiro no banco. Índio nenhum vai impedir que as máquinas, o garimpo e a boiada entrem em suas terras, que a soja cubra de verde as suas malditas reservas, que as mineradoras arranquem o ferro, o ouro e o alumínio debaixo de seus corpos a sete palmos do chão. Fuzis existem para isso: para colocar ordem, para abrir as portas para o progresso. O problema é que as armas de fogo, infelizmente, podem delatar a gente de bem imbuída da missão de clarear a amazônia. Coisa da imprensa que fica alardeando. Um Dr. Nunes nos jornalistas. Na ditadura, que saudades, Dr. Nunes, a gente podia derrubar a mata e dar uns tirinhos na traseira da indiada. Ninguém ficava sabendo. A imprensa submetida à caneta dos milicos. Censura faz bem. É para o povo não ficar preocupado. Como se fez no Brasil colônia, o lance é espalhar o vírus. Naqueles tempos, ninguém sabia ler e escrever, pura ignorância, a varíola e a gripe deram conta de matar a indiada como mosca. No século XX e até na boa ditadura a gente fez isso. Os índios, além de não gostarem de trabalhar, são mais frescos para doenças. Dr. Nunes, o coronavírus foi uma dádiva, não acha? O governo pôde fechar os olhos para as aldeias. Daqui uns tempos, colheremos os frutos e tomaremos as terras para os negócios que alavancam nosso país e minha conta, que pra bobo eu não sirvo. Nosso presidente já tinha falado que a indiada tinha que se adaptar o mais rápido possível. Quanto tempo já passou? E os Che Guevaras fazem uma gritaria, vêm falar em proteção, em direitos e essa conversa fiada. Agora índio tem direito? Só se for à cova! E os verdinhos que defendem a floresta? É ridículo alguém defender florestas, rio, lagoa. Se Deus não deu uma boca à nenhuma árvore ou bicho pra sair falando: tenho direito a estar viva, é porque está em nosso arbítrio fazer o que a gente quer, Dr. Nunes. Ninguém pode falar em nome de uma árvore ou de uma onça. Só louco. Ainda bem que um presidente do bem pensa nos bons negócios e não tem frescura se índio morre, se a floresta queima, se 600 mil maricas morrem de coronavírus, se milicianos matam esquerdinhas, se os corruptos do bem se escondem na casa de seu advogado. E essa porcaria de polícia federal prendeu um dos nossos. Só porque ele é fortinho. Uma vergonha para a nossa família. A imprensa toda falando, o pessoal pedindo a cabeça do presidente. Que saudades da censura, da ditadura, Dr. Nunes. Jornalista nenhum se atreveria a escrever sem medo de ir para o pau de arara. Ainda bem que o senhor está no STF. Fez bem em absolver nosso brother. Imagina, perdeu o mandato porque espalhou mentiras. E quem não? Agora ele está curtindo a vida, vendo SBT. Isso é que é família, Dr. Nunes. A gente se vê no Alvorada.
(*) Professor do Centro de Artes da UFPel.