TRAGÉDIA EM QUATRO ATOS - ATO III – ÚLCERA (BASEADA EM FATOS REAIS), POR PAULO GAIGER (*)
- Alexandre Costa
- 3 de jun. de 2022
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Meu nome é Gustavo, Gustavo do Nascimento, mas em casa me chamavam Flying, tipo aquele que voa, que quase nunca põe os pés no chão, tá sempre nas nuvens e cheio de ar. O apelido vem de criança, da criança sonhadora que eu era. Sempre imaginado coisas, mundos fantásticos, me evadindo da crueldade, living dreams, algo assim, eu adorava. Talvez por ser negro, pobre e negro, só me restava sonhar. Sonhar e respirar, bem fundo, expandir os pulmões. Voar. Black bird. Nesse país de racismos que não curam, negros só são livres nos sonhos. E meus sonhos eram bons, nem lembro a maioria deles, mas de alguns, sim. Queria ser engenheiro, um bom engenheiro. Embora viajante imaginário, sempre fui atento, obstinado, não me rendia, peitava quando eu achava que alguma coisa estava errada. Uma vez na escola disseram que eu fedia, que era inferior e burro por causa da cor da minha pele. Que eu tinha que estar no zoológico com os macacos. Que era uma pena que a escravidão tivesse acabado. Eu era menino, mas fiquei p da cara. Fui pra briga. Depois a direção repreendeu, me suspendeu. Fiquei uns dias em casa, que era pra me acalmar. A vida vivida era um tormento pra mim. Ser negro era viver um pesadelo diário, as pessoas atravessavam a rua, não davam lugar no assento duplo do ônibus, me viam como se eu fosse de outro planeta, uma ameaça ou me viam como incapaz ou com pena. Não sei o que era pior. Na escola, quase ninguém me chamava pelo meu nome. Eu só ouvia: negão, ô, negão! Eu tinha pressa pela noite para poder me proteger na escuridão. Em cada dia ensolarado havia uma escuridão que me torturava e que vinha da mente de quem me olhava e julgava. Isso era real, como uma tempestade invisível e implacável açoitando o meu corpo todas as horas de todos os dias, como o peso de um joelho em minha garganta obstruindo a respiração. Just keep breathin and breathin. But I can’t. Quase todos os meus sonhos só deram certo como sonhos, lá onde minha mão não toca, só o meu olhar... olhar flying da criança que teima comigo. Consegui me formar em engenharia. Então respiro. Encho os pulmões e espiro lentamente: tenho 28 anos, sou um homem negro e sou engenheiro. Muita felicidade na família e entre os amigos. Ufa! Fiz da tristeza um bom punhado de alegria compartilhada. Mas o olhar e a mente que me julgam têm fome. Um dia desses não tive tempo de voltar pra casa e sonhar e respirar. Fiz um voo para o abismo, sob a tempestade, um joelho pressionando o meu pescoço. Fui confundido, sei lá, com um terrorista, com um bandido, com o Godzilla. Não tive tempo pra uma reação como a que eu tive quando menino na escola e partir pra briga, até porque havia uma arma. Eu fiquei apavorado com a barreira policial. Sabem por quê? Porque sou negro, o alvo preferencial da fome das armas em mãos da polícia. Embora engenheiro, feliz e com muitos amigos, era um homem negro. O uniformizado sussurrando ao meu ouvido “tu és negro e, por isso, suspeitíssimo, bandidagem no sangue. Disparo para livrar a sociedade da ameaça que tu representas. Filmem minha glória, poder e liberdade. Façam selfies nesta paisagem comum: um homem branco e do bem, pressionando o gatilho contra um negro. Simples assim, é só mais um negro. A tua condenação, negão, é minha legítima defesa imaginária”. Não consegui me mexer, nem respirar, sangue, muito sangue, muito frio... “and breathin and breathin. But I couldn't. Invadiram e mataram o meu sonho? Ninguém me ouvia? Sufocava, sem ar, sem voos...The black bird was murdered. Meus sonhos eram só sonhos, mas como eram belos.
(*) Professor do Centro de Artes da UFPel