Los culpables han perdido La memória. (...) La normalidad es (no siempre, pero a menudo) uma construcción pos- terior, com la cual los culpables se es- conden no solo de los otros, sino tambien de si mismos: declarandose inocentes no mienten, están convencido de serlo”.
Ferdinando Camon
La Nación, de 15.1.95 Sobre a “perda de memória” das pessoas que colaboraram com os nazistas.
O HOMEM SE TRANSFORMA, AS INSTITUIÇÕES SE DEFORMAM
As ditaduras têm a propriedade de desnudar as pessoas e as instituições. Todos os enfeites são retirados, as características de personalidade são pervertidas e o homem transforma-se numa caricatura de si próprio. As instituições também se deformam. Veja-se o que aconteceu com os poderes legislativos e judiciários.
Aconteceu com Paulo um fenômeno senão igual pelo menos semelhante ao que ocorreu com milhares de pessoas, judeus ou não, que colaboraram com os nazistas. Paulo defendia a luta armada para combater a ditadura brasileira. Seu partido de origem já era radical. Mas ele achava que era pouco. Por isso, conseguiu criar uma ala dentro do partido e depois transformá-la numa outra organização clandestina, entre as tantas que existiam à época.
COMPRA DAS CONSCIÊNCIAS
O Estado Militar, com muito poder e muitos recursos financeiros, comprava as consciências de milhares de pessoas dentro e fora das instituições. Organizou-se, como numa situação de guerra, e centralizou as operações de combate a seus opositores mais radicais numa instituição de nível intermediário, que foi denominada OBAN, sediada em São Paulo. Ali estavam os melhores experts no combate à subversão, retirados das fileiras das forças armadas, das polícias e de instituições civis. Seus trabalhos eram coordenados por um coronel que dedicava tempo integral a suas atividades. Havia equipes de investigadores, de interrogadores e de torturadores. Todos caprichavam para desempenhar da melhor forma suas tarefas. O cérebro privilegiado do coronel comandava também a parte mais nobre das operações, constituída por uma equipe de “analistas”, que se encarregava de coletar os dados conseguidos principalmente através da tortura dos presos. Dessa maneira juntaram as peças de um gigantesco quebra-cabeças e, por fim, desmantelaram todas as organizações políticas clandestinas.
PRISÃO
Paulo era muito procurado pela OBAN. Finalmente foi encontrado no seu bunker em Santos, uma humilde casa de madeira, onde se encontrava sozinho, acompanhado apenas de uma metralhadora e de muitos dólares. Os policiais cercaram a casa e deram-lhe voz de prisão. Antes de entregar-se, Paulo nivelou sua metralhadora para o teto, rebentou várias telhas, deixou que o silêncio mostrasse sua intenção de que os tiros não foram dirigidos a eles, abriu a porta e entregou-se. Foi espancado desde Santos até São Paulo. Os experts, considerando que o pau-de-arara e os choque com “maricota” eram muito pouco para um indivíduo tão perigoso, deram-lhe choques com fios ligados diretamente na tomada da rede elétrica. Foram dez dias de tortura permanente.
IDEIA BRILHANTE
No décimo dia uma ideia brilhante iluminou Paulo. Não permitiria que outros companheiros passassem pelo mesmo tratamento. Não seria jamais um colaborador, mas poderia transformar-se num inteligente negociador político. Afinal, numa guerra os inimigos fazem negociações e acordos. Convenceu-se do brilhantismo de sua concepção revolucionária e partiu para a ação.
O coronel ouviu-o desconfiado. Não acreditava no que estava acontecendo, mas Paulo estava provando que os métodos de interrogatório realmente davam certo. Falaram sobre sua possível liberdade em troca das “entregas” de alguns nomes, não precisavam ser muitas. Mas Paulo, convicto, deu alguns nomes de sua própria organização e de todos os que lembrou de outras organizações. O coronel, generoso, dava-lhe cigarros e uma hora de sol todos os dias.
NO ACONCHEGO DA CELA
Sua cela passou a ser de alta rotatividade. Por ali passavam os presos vindos dos mais diferentes lugares do Brasil. O interrogatório mais efetivo era feito por ele próprio, no “aconchego" de sua cela, quando contava aos companheiros recém-chegados seu treinamento de guerrilha na China, o prazer que tivera de ter conhecido Chou-en-lai e os erros na condução política por parte das organizações que lutavam contra a ditadura. O recém-chegado mal suspeitava que estava fechando uma investigação anterior, que culminara com sua prisão e que tudo se iniciara pelo fornecimento de seu nome por Paulo aos policiais. Ficava encantado com as histórias de Paulo, sua fluência verbal, sua convicção ideológica, o sofrimento da tortura, o conhecimento que demonstrava sobre os mecanismo usados pela ditadura para prender seus opositores. De tão revolucionário muitas vezes parecia delirante. É verdade que chamava a atenção seu comportamento variável. Havia dias em que estava eufórico, muito conversador, criativo, cheio de idéias sobre qualquer tema que se abordasse. Em outros dias mostrava-se triste, lacônico, quase mudo, deitando-se no seu colchão num canto daquela cela úmida, escura e insalubre e ali permanecendo, como se tivesse dormitando, um dia inteiro.
O SALVADOR
Não morreu porque era jovem, forte e sadio. Mas pressentiu que não poderia continuar resistindo. Seu desejo, depois de morrer tantas vezes com os choques que recebeu, foi sobreviver com dignidade, como se esperaria de um revolucionário como ele. Ante o perigo iminente de desaparecer, optou pela sobrevivência. Construiu, então, um conjunto complicado de idéias, que considerou brilhantes e geniais, e transformou-se num “salvador” de seus companheiros que ainda não tinham sido presos. Convicto, começou a entregar nomes e até viajar com os policiais a procura das pessoas que conheceu. Em pouco tempo foram presas dezenas de opositores que, submetidos aos habituais tratamentos, entregavam outros nomes. De acordo com sua teoria “salvadora”, melhor seria que as pessoas fossem presas o quanto antes e que os novos recrutas na luta contra a ditadura tivessem prioridade, pois não podendo aprofundar seus compromissos políticos, o tratamento seria leve para todos, com a possibilidade inclusive de não serem submetidos a torturas e nem serem julgados pela justiça militar.
TESTEMUNHA
Suas convicções foram tão longe que no julgamento de seus próprios companheiros na justiça militar, apresentou-se como testemunha contra eles, usando um tempo de exposição muito maior do que o do próprio promotor. Discorreu em detalhes sobre tudo que ele próprio fizera e depois de sua relação com os demais. Seu raciocínio era claro: se ele, que fizera tudo aquilo, estava em liberdade, seus companheiros deveriam ser absolvidos, pois fizeram menos do que ele. Embora explicitamente assim não parecesse, continuava sendo o “salvador”. Dentro de sua construção psicológica, nada impedia que se tornasse amigo do coronel e acabou formando com ele uma díade inseparável, primeiro elogiando-o por seu caráter, sua inteligência, sua generosidade, agradecido pelos papos descontraídos após a hora de sol, e, depois, livre de tudo, passando a ser seu fiel empregado.
IDENTIFICAÇÃO COM O AGRESSOR
A mente humana é capaz de construir defesas extraordinárias na tentativa de preserva a vida. Paulo identificou-se com seu agressor, incorporando-o para o resto de sua vida. Era ele próprio mais o coronel. Não abdicou de sua condição de revolucionário, pois tornou-se um “salvador” de seus companheiros, mas tornou-se um policial a serviço da ditadura. Àqueles que o chamavam de traidor respondia, com um ar de superioridade, que sabia o que estava fazendo. Pensava que era o mesmo Paulo de antes, o revolucionário, mas havia se transformado num instrumento manipulado, em que a atuação policial passou a ser decisiva para sua sobrevivência. No entanto, negava que estivesse atuando como um policial. Não morreu fisicamente, mas desapareceu política e moralmente. A pessoa de Paulo morreu, pois não era mais o mesmo de antes. A dissociação de sua personalidade transformou-se num defeito incurável, que levará para o túmulo. Transformou-se numa caricatura de si mesmo. Como ser humano é compreensível e até perdoável sua conduta. Como político e, mais do que isso, como revolucionário, é imperdoável.
É isso que as ditaduras fazem com os seres humanos.
(*) Bruno Mendonça Costa é médico psiquiatra.
NOTA: este texto foi publicado originalmente pela coleção Médicos (PR)escrevem, edição de 1.995.
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