por Juçara Gaspar (*)

Escrevo porque como disse Bell Hooks "nenhuma mulher jamais escreveu o suficiente". Escrevo porque amo as palavras, porque gosto de as ver brotar, sobretudo, com paixão. Enquanto escrevo essas palavras iniciais posso sentir esse movimento que está em pleno curso, ao mesmo tempo que estamos em luta aqui no extremo sul do mundo, sabemos que outras pleiteiam em outras partes - está por todo o planeta - sentimos e ouvimos outras narrativas históricas sendo construídas. Estamos nas ruas contra a invasão dos nossos corpos, exigindo justiça, respeito, basta! Foi só por esse motivo que sai do isolamento em 2020 (com todos os protocolos de segurança), para dizer, junto a milhares de brasileiras, que basta de feminicídios, que parem de nos matar. Foi por duas vezes, durante a pandemia do COVID-19, uma em setembro, pelo aborto legal e seguro como direito e outra em novembro, dia 08, num movimento de repúdio ao estupro e à tentativa de calar denúncias, por parte da sociedade, do sistema jurídico e do Estado. Em ambas trabalhei performances com outras artistas ativistas, artivistas. Sempre buscando a ideia de fazer do palco, da rua, ou da pesquisa na academia, ferramentas e espaços, instrumentos e oportunidades de ampliar o debate sobre a luta pela real libertação das mulheres, pensando e participando da construção dessas outras narrativas históricas.
Por mais de dez anos, à frente dA Cia Dramática, tenho buscado reunir mulheres em trabalhos artísticos, como uma forma de ser ponte, ou de abrir portas e janelas, juntar ideias, profissionais das artes da cena, criar projetos e desenvolvê-los com o olhar da outra, ou outras, ampliando as possibilidades de entendimento e de construção. O sistema cooperativo - reincidente no trabalho desenvolvido pelos movimentos e agrupamentos teatrais feministas - pode ser encontrado em vários momentos da história das mulheres no mundo. Ler sobre esses processos coletivos durante as aulas do primeiro semestre do mestrado na UDESC, compará-los com a própria vivência entre teoria, prática teatral e ativismo, reafirma o quão potente e possível é pauta-los e como eles fortalecem o trabalho individual de cada artista e como podem auxiliar numa compreensão sobre a emergencial necessidade de organizações e coletivas feministas.
Vale realçar que nas práticas de teatro feministas não há apenas a produção de textos mas uma reformulação dos próprios meios de produção teatral. Torna-se comum a produção de textos a partir de improvisações e a partir de temas ou experiências pessoais. (MIRANDA, Maria Brígida de)
Meu desejo é seguir entrelaçando bibliografia com essas experiências e referências, fluindo junto à prática artística, numa pesquisa que poderá ser utilizada como apoio para fazedoras do teatro, com a ideia de fomentar o criar de dramaturgias, onde as narrativas sejam pautadas por nós, onde não sejamos castigadas ou sacrificadas, onde sobrevivemos, protagonistas e escritoras da nossa própria história, além de fomentar um pensamento artivista, que trabalhe arte e militância por equidade e justiça de gênero.
São textos que além de serem escritos por mulheres, têm também a mulher como foco e costumam direcionar o discurso para outras mulheres. Parece apropriado pensar que, peças com estas características objetivam a conscientização de mulheres sobre os mecanismos de opressão e controle nas sociedades patriarcais.
Esse chamado à escrita feminina, encontrada nos textos da Brígida, nas aulas da Luciana Lyra e em muitas outras autoras, como Hooks, Woolf, Perrot, Anzaldua entre outras, é ferramenta potente para acionar narrativas. Anotações documentais, cartas, bilhetes, autorretratos, cartografias de si, que permitem vislumbrar um teatro futuro com outros modelos de representatividade, de discursos, de possibilidades transgressoras. Eu mergulho nessa escrita pessoal que é política, porque expõe de nós o que é humana, latente e viva. As urgências cotidianas do plano doméstico, a exaustão da lida, mesmo num ambiente de trabalho compartilhado, a impotência, o “não dar conta” e o “porque tem que usar o tempo da pandemia para se reinventar”. Que tempo? Me aventuro a registrar nessa coluna no Esquina Democrática, os capítulos próximos dessa investigação, resenhas e dicas de leitura, experiências do teatro feminista, sempre com o recorte doméstico, o cotidiano confinado. Uma atriz, mãe, mestranda e suas tentativas de criação artística, de narrativa e escritura, entre malabarismos econômicos, jorro de notícias absurdas e dolorosas e a abdução dos afazeres que nunca tem fim.
* Juçara Gaspar é atriz e professora de teatro.
Referências
MIRANDA, Maria Brígida de. Teatros Feministas Na Ilha Das Bruxas: Memórias E “Herstory” De Práticas Teatrais Feministas Em Florianópolis - Fazendo Gênero nº11. 2017. Teatro Feminista: Da Pesquisa À Sala De Aula.
Frida, Violeta Parra e mulheres anônimas ganham vida no corpo da atriz Juçara Gaspar Em entrevista ao Brasil de Fato RS, a artista gaúcha fala sobre seu processo criativo e a luta feminista. Fabiana Reinholz - Brasil de Fato | Porto Alegre | 06 de Fevereiro de 2020 às 10:42 - https://www.brasildefato.com.br/2020/02/06/frida-violeta-parra-e-mulheres-anonimas-ganham-vida-no-corpo-da-atriz-jucara-gaspar
ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229, jan. 2000.
ISSN 1806-9584. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880>. Acesso em: 19 mar. 2020.
LYRA, Luciana. Louise em dois tempos: estratégias brasileiras feministas de criação teatral em fluxo de resistência. Urdimento, Florianópolis, v.3, n.33, p. 196-213, dez. 2018.
HOOKS, bell. Mulheres negras: moldando a teoria feminista. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 16, p. 193 – 210, janeiro – abril, 2015.