por Nora Prado (*)

Neste domingo assisti ao documentário Sertanias, sobre os caminhos percorridos pelo escritor João Guimarães Rosa para compor o grandioso panorama geográfico e histórico de um dos livros mais célebres da literatura brasileira, Grandes Sertões Veredas. Idealizado pela sobrinha do escritor, Juliana Dametto Guimarães Rosa, que em parceria com Alexandre Roldão percorreram a trilha de 178 km pelo sertão mineiro ao lado de mais cem admiradores do romance que narra a história de amor entre Riobaldo e Diadorim. Numa espécie de “turismo literário”, a empreitada refaz a trajetória que Guimarães Rosa fez a cavalo.
Ao longo do percurso vamos conhecendo alguns desses admiradores anônimos que, por razões diversas, adoram a obra de Rosa. Uma professora de português, um professor de literatura alemão que veio ao Brasil por causa do romance, um praticante de kung fu, uma jovem portuguesa com seu diário repleto de passagens emblemáticas da história, um poeta andarilho e, uma ativista rural entre outros.
É reconfortante saber que a saga mineira narrada em linguagem nativa e com um sotaque diferente de tudo, até então escrito no Brasil, ainda suscita tanta curiosidade e desperta paixões arrebatadoras; a ponto de fazer grupos de adoradores do livro percorrerem quilômetros numa aventura a pé pelo sertão imortalizado na obra do escritor. Andando sob o sol a pino e o calor escaldante, chegando ao fim de cada dia com bolhas e calos nos pés, o grupo não esmorece para cumprir sua missão de conhecer cada pedaço do sertão real que Rosa imprimiu com riqueza de detalhes inebriando a imaginação de quem viaja pela sua história.
A chegada ao rio Urucuia, importante cenário do romance, é muito emocionante e os próprios habitantes locais se encarregam de dar as boas-vindas aos viajantes derramando água do rio como se os batizassem. A poeira acumulada em dias de estrada pode ser, finalmente, lavada nas verdes águas deste belo rio. A viagem segue acompanhando de perto os rastros do escritor e as homenagens que alguns viajantes fazem ao declamarem trechos completos da obra.
Percebemos que a herança do jagunço, tão bem descrita em Riobaldo, que serve ao senhor da terra, que mata para proteger os coronéis e as suas posses, segue como maldição moderna a nos assombrar ainda hoje. Lázaro, capanga morte há poucas semanas, é apenas uma face perversa desta horrenda tradição feudal que segue matando inocentes em nome de Deus e da ordem estabelecida. Os senhores feudais, de agora, são os ricos fazendeiros do agronegócio que não se acanham em mandar matar indígenas, pequenos agricultores e quem quer que seja que, aos seus olhos, ameaçam o seu poder local. Seguem aliados aos políticos oportunistas de plantão, os magistrados e a polícia que atua como milícia. Infelizmente, para lá da beleza histórica do romance, ainda vivemos num grande sertão comandado pela força bruta que aterroriza e destrói sem piedade, numa batalha desigual e injusta, mas acima de tudo, anacrônica.
E pensar que o ideal da reforma agrária, prometida inclusive pelas esquerdas, nunca se cumpriu e está tão distante de se concretizar como política de ocupação sustentável e moderna para os agricultores rurais do Brasil. Quanto atraso meu Deus!
E pensar que Diadorim, primeira personagem mulher e trans da literatura brasileira, não foi capaz de sensibilizar o machismo reinante nem de abalar o patriarcado institucional brasileiro. A comunidade LGBTQ+ segue sendo perseguida, ameaçada e morta diariamente pela homofobia e a ignorância de um atraso e um primitivismo assustador.
Que o diálogo contemporâneo com a bela obra de Guimarães Rosa sirva também para denunciar e encerrar esse modelo pavoroso de poder baseado na força e na bestialidade.
Porto Alegre, 12 de julho de 2021.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.