REPORTAGEM REVELA EXECUÇÃO PLANEJADA DE MILITANTES DE ESQUERDA NA AMÉRICA LATINA NOS ANOS DE CHUMBO
- Alexandre Costa
- 13 de dez. de 2021
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A reportagem "Crime da ditadura brasileira é investigado na Argentina", de Vasconcelo Quadros, postada no site da Agência Pública, na última sexta-feira (10/12), traz à tona o depoimento do ativista gaúcho Jair Krischke, sobre o desaparecimento do espião brasileiro Edmur Camargo, em junho de 1971. Infiltrado em organizações de esquerda, o brasileiro naturalizado uruguaio Alberto Octávio Conrado Avegno, um dos agentes mais eficientes durante os "anos de chumbo", teria atuado no Uruguai, Argentina, Chile, Cuba e Argélia. O maior de todos os espiões infiltrados ajudou a destroçar os grupos da esquerda armada que resistiram à ditadura. A investigação está ligada à morte de mais de 70 exilados e desaparecidos, entre eles Edmur Camargo. O processo argentino traz à luz novamente a participação brasileira na Operação Condor, evidenciando os abusos e violações cometidos pelos governos durante a ditadura militar. A investigação sobre o sequestro e o desaparecimento do brasileiro pode incriminar militares, confirmando a prática da execução planejada de militantes de esquerda banidos e aprisionados, além de comprovar a infiltração de agentes nas organizações clandestinas, durante os anos de chumbo.
Edmur Péricles Camargo, na época asilado no Chile, seguia para Montevidéu quando foi retirado clandestinamente de um avião da Lan-Chile que fez escala no Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, no dia 16 de junho de 1971. Levado para uma base da Força Aérea Argentina a 30 quilômetros, o Aeroparque, foi embarcado num avião da Força Aérea Brasileira (FAB) rumo ao Brasil no dia seguinte. Os últimos registros de Camargo em vida são o pouso do avião da FAB no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, na manhã de 17 de junho de 1971, e o testemunho de presos políticos que o viram ingressar no quartel do Exército da rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, famoso centro de tortura e execuções.
O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), sediado em Porto Alegre, Jair Krischke, desarquivou os documentos secretos sobre a operação ilegal e, numa denúncia assinada também pelo ativista Adolfo Pérez Esquivel, Prêmio Nobel da Paz, busca a responsabilização criminal dos militares brasileiros e argentinos na Justiça Federal de Lomas de Zamora, na região metropolitana de Buenos Aires. Lá, ao contrário da jurisprudência firmada pela Justiça brasileira, desaparecimento forçado é crime de lesa-humanidade e imprescritível, portanto punível com prisão.
Aos 83 anos, 50 deles dedicados à proteção de perseguidos políticos e à busca de documentos das ditaduras do Cone-Sul, Kirschke é testemunha ocular e detentor de um dos maiores arquivos da América do Sul sobre os horrores dos anos de chumbo. As centenas de pastas com documentos variados ocupam prateleiras nas quatro paredes de uma sala com aproximadamente 16 metros quadrados na sede do MJDH. Criado logo depois do golpe, mas formalmente constituído em 1979, o movimento comandou operações que retiraram do país mais de 2 mil militantes perseguidos pelo regime militar, segundo anotou a Comissão Nacional da Verdade (CNV). “Foi um trabalho conjunto. O MJDH tem um conselho de dez integrantes. Eu sou só o porta-voz”, diz.
Jair Krischke e Adolfo Pérez Esquivel aprestaram depoimento por videoconferência na semana passada, abrindo o processo e pedindo que a Justiça determine investigação para identificar os agentes argentinos. Os brasileiros citados na denúncia são o general da reserva Sebastião José Ramos de Castro, que foi chefe do SNI, coronel aviador Miguel Cunha Lana, e o diplomata Paulo Sérgio Nero, já falecido. É o único caso em andamento em que agentes livres da lei graças à complacência do Estado brasileiro com os crimes da ditadura podem acabar sendo punidos no exterior junto com agentes estrangeiros que colaboraram com a operação ilegal.
“Sinto inveja da Argentina porque ela fez uma transição correta da ditadura para a democracia, permitindo que centenas de agentes que torturaram, mataram e sumiram com oponentes sejam punidos. Lá o Videla [general Jorge Rafael Videla, ditador argentino] morreu na cadeia! Aqui não teve justiça de transição. O que houve foi uma transação, disse à Agência Pública o criador do Movimento Justiça e Direitos Humanos (MJDH), a mais antiga entidade de proteção a perseguidos políticos pós-golpe de 1964, sediado no Rio Grande do Sul. Ele diz que os militares se sentem tão à vontade que nunca se deram ao trabalho sequer de abrir os arquivos, que poderiam indicar onde foram parar os desaparecidos políticos.
Segundo o ativista, sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, o que já era ruim ficou pior: os serviços de identificação das vítimas da ditadura e emissão de certidões de óbito apontando a violência do Estado como causa mortis foram paralisados. As comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos, desvinculadas do Ministério da Justiça e transferidas para o Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos, comandada por Damares Alves, têm negado todos os pedidos de reparação e, ainda, anulado outros que estavam em andamento. Para Krischke, uma clara tentativa de tentar recontar a história dos anos de chumbo aliviando os crimes da ditadura.
“O Bolsonaro diz que a ditadura foi uma maravilha e que o Ustra [coronel Carlos Brilhante Ustra, apontado como um dos maiores torturadores] foi um santo. É uma mentira que nós, que temos responsabilidade com a verdade, não podemos aceitar. O direito a reparação está consagrado nas disposições transitórias da Constituição”, lembra, lamentando que nenhum governante civil do período democrático tenha tido a coragem de enfrentar os militares, como fez na Argentina o ex-presidente Raúl Alfonsín. Otimista, Krischke acha, no entanto, que a forte presença militar no governo Bolsonaro e, agora, a romaria de generais que ingressando na política em torno do ex-juiz Sergio Moro abrem um flanco para discutir as pendências da ditadura na campanha do ano que vem. “Eles [os militares] deixaram a bunda de fora”, alfineta.
Krischke ressalta que até perícias que estavam em andamento para tentar identificar ossadas retiradas de uma vala clandestina do Cemitério de Perus, em São Paulo, e da região onde ocorreu a Guerrilha do Araguaia foram paralisadas. “É uma vergonha. Não se faz mais nada”, acusa o ativista, que considera o esclarecimento dos crimes da ditadura um imperativo humanitário.
Aos 83 anos, 50 deles dedicados à proteção de perseguidos políticos e à busca de documentos das ditaduras do Cone-Sul, Kirschke é testemunha ocular e detentor de um dos maiores arquivos da América do Sul sobre os horrores dos anos de chumbo. As centenas de pastas com documentos variados ocupam prateleiras nas quatro paredes de uma sala com aproximadamente 16 metros quadrados na sede do MJDH. Criado logo depois do golpe, mas formalmente constituído em 1979, o movimento comandou operações que retiraram do país mais de 2 mil militantes perseguidos pelo regime militar, segundo anotou a Comissão Nacional da Verdade (CNV). “Foi um trabalho conjunto. O MJDH tem um conselho de dez integrantes. Eu sou só o porta-voz”, diz.