Em entrevista à Pública - Agência de Jornalismo Investigativo, postada nesta terça-feira (15/10) e assinada por Por Marcelo Oliveira, a atual presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), Eugênia Augusta Gonzaga, defende que o Brasil deveria mudar a forma como conta seus mortos e desaparecidos na ditadura militar (1964-1985). “Se nós formos computar as pessoas , a gente passa facilmente do número de 10 mil mortos e desaparecidos políticos no Brasil”, avalia.
Com a experiência de quase 30 anos de Ministério Público Federal (MPF) e de 23 anos lidando com justiça de transição, a procuradora regional da República considera que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi muito conservadora ao listar somente 434 mortos e desaparecidos políticos em seu relatório, publicado em 2014. “Vamos ver se a partir de agora a gente consegue modificar essa visão que o Brasil tem de que a ditadura brasileira foi a que menos matou na América Latina.”
A procuradora, que já havia ocupado o cargo entre 2014 e 2019, voltou à presidência da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos em agosto deste ano. Para Eugênia Augusta Gonzaga, a CNV adotou os critérios previstos na Lei de Mortos e Desaparecidos Políticos, de 1995, e por isso “não conseguiu computar, por exemplo, camponeses, indígenas, vítimas de esquadrão da morte e do surto de meningite, por exemplo”.
“A Lei sobre Mortos e Desaparecidos Políticos foi negociada com os militares em 1995 e estabeleceu o reconhecimento da morte, mas não reconheceu que o governo matou essas pessoas”, explica Gonzaga. Segundo a presidenta da CEMDP, pela lei que criou a comissão, para que uma vítima seja reconhecida como morta ou desaparecida política, seria necessário que a ocorrência fosse parte da resistência à ditadura militar e “a família tinha que demonstrar que essa pessoa estava ligada de algum modo a algum ato de resistência política”.
Em 2002 foi criada a Comissão de Anistia, cujo critério é mais elástico e prevê indenizações para pessoas atingidas pelos atos de exceção. “Então, por exemplo, eu era professora, me demitiram porque eu tinha um livro proibido [pela ditadura]. Eu não era militante política, mas fui atingida e posso ser anistiada. No Chile e na Argentina, houve milhares de mortes. Todos os mortos eram militantes políticos? Não. É o critério desses países que foi muito mais abrangente, como o adotado em 2002 no Brasil. O critério de 1995 foi muito restrito. E, infelizmente, a Comissão Nacional da Verdade seguiu o critério de 1995. Por isso, a CNV não conseguiu mudar esse cenário de que o Brasil teve apenas essas centenas de mortos e desaparecidos políticos”, explica a procuradora.
“Claro que para fins criminais você tem que ter essa individualização. Agora, para fins de memória e verdade, a gente não tem que ter esse detalhamento. Por exemplo, as crianças que foram vítimas do surto de meningite em São Paulo e cujos corpos foram ‘desaparecidos’ na vala de Perus. Eu tenho como certo que são pessoas atingidas por atos de exceção. Entendo que todos são mortos e desaparecidos políticos, porque havia uma política de extermínio”, afirma.
O volume 2 do relatório da CNV traz relatórios resultantes dos trabalhos sobre camponeses e indígenas. A estimativa é que “pelo menos” 8.350 indígenas, por exemplo, tenham sido mortos durante a ditadura. Porém, justamente por conta de todos esses casos não estarem individualizados (o que era exigido pela lei que criou a CNV), fato que se repetiu na pesquisa sobre camponeses, o relatório da comissão não incorporou esses casos à lista oficial de 434 mortos e desaparecidos: o volume 3 do relatório, que traz a biografia de cada uma das vítimas.
Em março de 2024, o ex-deputado federal e ex-preso político Gilney Viana, pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB), concluiu uma pesquisa que aponta que 1.654 camponeses foram mortos entre 1964 e a promulgação da Constituição de 1988. O trabalho de Viana avança em relação às conclusões da Comissão Camponesa da Verdade, que encerrou seus trabalhos em 2015, apontando 1.196 vítimas camponesas no período. LEIA A ENTREVISTA COMPLETA NO SITE DA PÚBLICA