Uma pesquisa realizada pelo engenheiro químico Luciano Zini, que embasou sua tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Engenharia Química da UFRGS, revelou que as águas consumida pelos moradores de Porto Alegre, Viamão, Passo Fundo e Capão do Leão contém alto nível de contaminação química e também por Giardia e Cryptosporidium – protozoários causadores de doenças intestinais encontrados em fezes de animais, principalmente gado bovino. Alguns parâmetros estudados ultrapassaram os limites toleráveis de risco infeccioso segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
A ideia é que os resultados do trabalho sejam usados como valores guias em parâmetros químicos ainda não previstos no Padrão Brasileiro de Potabilidade, visando reduzir os riscos à saúde da água consumida no Estado. Os padrões são definidos a partir de um conjunto de exigências que devem ser atendidas para que a água seja considerada adequada ao consumo humano e reduza os riscos à saúde.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, a legislação prevê a análise de outros agrotóxicos, além dos exigidos pelo padrão nacional. “Além dos previstos no Brasil, devem ser analisados 46 parâmetros a mais que são aqui do Rio Grande do Sul. São necessárias novas ações das instituições competentes, como dos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente, para que se pense em que atitudes poderiam ser realizadas para evitar que a contaminação de protozoários nos mananciais chegue à água”, completa Luciano
O estudo utilizou dois tipos de avaliação de risco, uma química e outra biológica, feitas através de cálculos de probabilidade. Na primeira avaliação, Luciano Zini calculou os valores guias em 61 parâmetros químicos não listados no padrão brasileiro de potabilidade. Dentre os resultados das amostras, alguns elementos não listados apresentaram altos índices. Um exemplo é o 17-alpha-etinilestradiol, hormônio sintético lançado no meio ambiente pela descarga de esgoto doméstico e efluentes não tratados, que apresentou concentração mais de 260 mil vezes acima do valor guia.
A segunda avaliação foi realizada a partir da ocorrência de protozoários nas estações de tratamento de água do Rio Grande do Sul entre os anos de 2016 e 2020. De 2.304 amostras de água não tratada, 223 apresentaram esses organismos, com concentração variando de 0,1 a 21,5 cistos de Giardia e/ou oocistos de Cryptosporidium por litro. Para alguns sistemas de abastecimento de água, o risco de infecção por Giardia ultrapassou o limite de tolerância definido pela OMS, que é de um caso a cada mil pessoas.
As hipóteses levantadas pela pesquisa sugerem que as contaminações químicas não previstas pela regulamentação brasileira se devem ao fato de o Padrão Brasileiro de Potabilidade não contemplar os contextos locais, mas, sim, parâmetros mais gerais. Por parte do risco biológico, o estudo apontou que, entre 202 mananciais superficiais do RS, 56 possuem alta concentração dos protozoários citados, com média geométrica anual de Escherichia coli superior a mil células por 100 mL. Isso significa que esses mananciais de captação de água estão altamente impactados, e a estimativa é que cerca de três milhões de pessoas tenham consumido água sujeita a ter a presença de protozoários.
POSSÍVEIS CAUSAS De acordo com o engenheiro, o número de cabeças de gado no estado é maior que a população humana, o que evidencia o risco desses protozoários estarem circulando no ambiente do Rio Grande do Sul e de forma muito intensa, devido ao nosso modelo econômico baseado na pecuária. A estimativa é de que o estado tenha mais de 12 milhões de cabeças de gado, enquanto a população gaúcha é de cerca de 11 milhões de pessoas. Outro fato importante mencionado por Luciano Zinidiz respeito ao tratamento de esgoto no estado, que é escasso. A capacidade instalada é de dez mil litros por segundo, mas apenas metade dessa capacidade está sendo utilizada, não atendendo nem a 30% de toda demanda do estado. Além disso, o tratamento que é aplicado não elimina esses protozoários.
Luciano Zini alega que o Governo Federal é negligente com as questões sanitárias e cita como exemplo a extinção de cadeiras da área da saúde no Conselho Nacional do Meio Ambiente (em dezembro de 2021, uma decisão da ministra do Supremo Tribunal Federal Rosa Weber suspendeu a redução). O pesquisador acrescenta que o Brasil está distante de conseguir cumprir as metas da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, que prega uma economia sustentável e preza pela natureza local.
SANEAMENTO BÁSICO Zini acredita que é preciso universalizar o saneamento básico no Brasil, pois "temos 35 milhões de brasileiros sem acesso à água potável – os cientistas já vêm alertando [sobre isso] há muito tempo, a classe política tem ignorado. O desafio é deixar as novas medidas se manterem num médio ou longo prazo com um consenso da classe política de olhar para essas questões ambientais e entender que saneamento básico não é um balcão de negócios, mas uma questão de saúde, e não apenas de uma geração".
REFERÊNCIAS DESATUALIZADAS No setor industrial, Luciano Zini afirma que é o próprio meio ambiente que deve determinar quais efluentes podem ser lançados em mananciais. Uma das dificuldades para essa regulamentação são as referências desatualizadas que o Conselho mantém desde 2005, nas quais faltam novos indicativos de risco da água ao consumo humano, como os abordados no estudo de Luciano. “A perspectiva de risco à saúde de 2005 para 2022 já passou por um avanço muito grande no conhecimento científico. Novas metodologias analíticas de métodos in vitro para cálculo desses riscos já foram estudadas, então essa legislação está um tanto quanto defasada, e não contempla diversos parâmetros que têm sido quantificados na água para consumo humano”, diz o pesquisador.
RESUMO DA PESQUISA O acesso à água potável é essencial à saúde, é um direito humano e componente efetivo de políticas para a proteção da saúde. Assegurar a água e saneamento para todos, melhorar a qualidade da água, reduzindo a poluição, figura entre os objetivos do desenvolvimento sustentável da agenda 2030. O objetivo desta tese é realizar avaliação quantitativa de risco à exposição humana a contaminações químicas via água para consumo humano no Brasil, e de protozoários no Estado do Rio Grande do Sul, a fim de contribuir com valores guias para parâmetros químicos não previstos no padrão de potabilidade e com estimativas de risco de infecção por Giardia spp. e Cryptosporidium spp.
Em relação às contaminações químicas foi realizada revisão sistemática de artigos publicados entre 2012 e 2019 no Brasil e de buscas em dissertações e teses para ocorrências no RS. Foram encontrados 101 parâmetros químicos na água para consumo humano no Brasil, dos quais 31 são listados no padrão brasileiro de potabilidade vigente. A avaliação quantitativa de risco químico foi aplicada a partir dos dados toxicológicos disponíveis na literatura para calcular os valores guia para 61 dos 70 parâmetros não listados. A avaliação quantitativa de risco microbiológica (AQRM) foi realizada a partir de dados de ocorrência de protozoários das estações de tratamento de água do RS, no período de 2016 a 2020, acessados a partir do sistema de informação de vigilância da qualidade da água para consumo humano. Verificou-se que do total de 2304 análises de água bruta, em 223 amostras tiveram quantificação de cistos de Giardia e/ou oocistos de Cryptosporidium em concentrações que variaram de 0,1 a 21,5/L. Verificou-se que há sistemas que ultrapassaram os limites toleráveis de risco de infecção por Cryptosporidium de acordo com a OMS.
Por fim, sugere-se que seja adotado em paralelo ao padrão de potabilidade uma listagem oficial mais ampla de parâmetros químicos contendo valores guias, a começar pelos 61 da presente tese. Quanto aos protozoários, o diagnóstico do risco microbiológico superior aos limites de tolerância aceitáveis de acordo com a OMS poderão nortear órgãos governamentais a tomarem medidas visando reduzir os riscos à saúde.
(*) Com informações da Secom-UFRGS