por Nora Prado (*)
As vezes eu acredito que Deus existe e deve ser, mesmo, brasileiro como afirma o ditado popular. Mas não pelos privilégios substanciais com os quais fomos agraciados neste verdadeiro paraíso de proporções continentais, nem com o povo brasileiro cuja miscigenação uniu o melhor dos índios, africanos e portugueses e, posteriormente, se abriu à uma infinidade de misturas com praticamente todos os povos do planeta numa demonstração de tolerância e convivência pacífica com a diversidade.
Apesar de não termos furacões, terremotos, maremotos nem qualquer desses terríveis fenômenos naturais, que ameaçam a vida de tantos povos, fomos contemplados por décadas de atraso sistêmico em todas as áreas em consequência direta de uma política marcada pelo colonialismo estrutural, o racismo de raiz, como efeito colateral de séculos de escravidão e uma manipulação generalizada pelas potências que dominam a América Latina e os países emergentes, especialmente, os Estados Unidos.
Me refiro à mensagem subliminar que o vírus da Covid-19 trouxe consigo desde que a pandemia se espalhou pelo planeta. Ora, uma das características mais perversas dos sintomas de quem padece pela infecção das vias respiratórias é a falta de ar. A sensação de estar sendo asfixiado pela baixa concentração de oxigênio no sangue. Não à toa, os pacientes graves costumam ser entubados para receber a oxigenação mecânica em função da insuficiência pulmonar característica. Só no Amazona, com a lotação das UTIS e o sistema de saúde atolado numa das maiores crises, desde o início da pandemia no país, verificamos a falta de tubos de oxigênio para dezenas de pacientes em estado grave. A falta deste insumo poderoso e vital para que muitas mortes fossem evitadas, aumentou a crise entre o governo do estado e o desgoverno federal que segue tentando contornar a gravidade da pandemia completamente descontrolado no Brasil.
Fiquei pensando como era possível que no Amazonas pudesse faltar justamente oxigênio, matéria prima de uma região pródiga em vegetação e diversidade biológica graças a floresta Amazônica? Sabemos que a floresta, entre tantas coisas, funciona como um grande filtro para o gás carbônico e as várias emissões venenosas despejadas diariamente na nossa atmosfera. Além disso, a sua densa composição de altas árvores, arbustos e vegetação mais rateira, além de servir como habitat natural para milhares de espécies, também serve para manter a temperatura mais fresca e possibilitar o fluxo dos rios aéreos, responsáveis pela umidificação da região e as áreas vizinhas. Outra grande propriedade desta imensa e rica floresta é servir de anteparo aos ventos fortes e tufões do hemisfério norte que, sem ela, não teria como serem dissipados nem os seus efeitos mais agressivos serem amortecidos.
Ou seja, o poder de regulação térmica e filtragem do ar pela floresta amazônica é digna de nota, pois ajuda a equilibrar o clima no planeta inteiro. Sua preservação deveria ser assunto da mais alta importância pois dela dependemos todos nós. Infelizmente o governo atual afrouxou a fiscalização das áreas de preservação ambiental e extinguiu órgãos que, ainda que precariamente, realizavam essa função. Numa demonstração de desprezo ao meio ambiente o ministro Ricardo Salles, desde que assumiu a pasta, deu sinal verde para que o desmatamento e comercialização da madeira aumentasse numa escala assustadora. Os números de incêndios e queimadas criminosas disparou desde que assumiu o cargo e a escalada de degradação do solo por garimpos ilegais e uma desordenada destruição da floresta para o plantio da soja e a criação do gado, em grande parte da região norte, afetou consideravelmente o poder de regeneração da floresta.
As queimadas criminosas que abalaram o mundo em 2019 a partir do Dia do Fogo, teve consequências desastrosas para as populações indígenas e ribeirinhas, além de provocar um genocídio incalculável para as espécies nativas que morreram aos milhares. Tudo devidamente documentado para a nossa revolta e impotência diante desse desastre premeditado. Alemanha e França foram os dois países que mais reagiram, entre outros, a esse horrendo episódio exigindo reparação e medidas mais austeras no controle ambiental. Perdemos parceiros comerciais e incentivos monetários nesta brincadeira de mau gosto, mas, perdemos e seguimos perdendo o precioso tecido verde de uma floresta abençoada. Pelos números e registros atuais o desmatamento Amazônico segue com uma das maiores altas, nestes dois últimos anos e, mesmo com seguidas denúncias de assassinatos de líderes ambientais e lideranças indígenas, que se ocupam da preservação florestal, essas práticas medievais seguem impunes. Vergonhoso para nós e para o mundo.
O recado da covid-19 é tão suscinto e claro que sua obviedade escapa à nossa razão neoliberal e consumista. Mas está dizendo, ou melhor gritando: “Parem de destruir a floresta ou não terão mais oxigênio para respirarem!”
Os indígenas, na sua superioridade ancestral e genuína, sempre souberam disso e nos alertaram diversas vezes. Mas em nossa arrogância pretensamente superior e em nossos desejos civilizatórios desconsideramos os avisos, destruído sistematicamente o nosso próprio pulmão verde. Não é metáfora, não. Descobri que essa imagem não pode ser mais real e adequada à função primordial da Amazônia.
Caso não seja feito uma parada emergencial e drástica nesta destruição da floresta ultrapassaremos o ponto de retorno. O ponto delicado e crucial no qual diversos cientistas já alertaram, pois caso seja ultrapassado não haverá condições de regeneração e o que um dia fora floresta tropical estará fadada a se transformar em savana ou puro deserto. Simplesmente trágico e assustador.
Ora se Deus está nos dando esta “barbada” através da covid-19 é melhor escutarmos e humildemente aceitarmos os fatos. Para respirar é preciso oxigênio, para seguirmos enquanto sociedade humana é preciso respeitar os limites da nossa interferência planetária. Salvar a floresta amazônica não significa mais uma abstração politicamente correta, mas a única opção razoável se quisermos permanecer vivos sobre a terra.
Em nosso caso o buraco ainda é mais embaixo, pois diante de um governo irresponsável precisamos fazer isso na marra. Salvar a floresta amazônica da aniquilação não depende mais do governo, depende da união e da força coletiva da sociedade civil organizada para parar este demônio!
Que a linda canção Refloresta de Gilberto Gil em parceria com o Instituto Terra, de Sebastião Salgado e Lélia Wanick, encontre eco e nos inspire nessa campanha. Só assim, com a floresta exuberante e em pé, a profecia de Caetano Veloso se revelará aos povos, pois o Índio em pleno corpo físico “surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto quando terá sido o óbvio. ”
Porto Alegre, 24 de fevereiro de 2021.
* Nora Prado é atriz, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.