"Os originários", texto de Sérgio Abranches, publicado no Headline Ideias, neste domingo (4/6), reúne opinião e informações sobre dois documentários que mostram como vivem e sofrem os indígenas, com a violenta e destrutiva invasão de suas terras. O artigo faz um alerta para o estrago que o assédio legislativo aos direitos dos indígenas pode fazer, por meio do ataque frontal do agronegócio e a aprovação do marco temporal na Câmara dos Deputados.
Sociólogo, cientista político e escritor. É autor de “Presidencialismo de coalizão”, Abranches cita duas mentiras com cobertura ideológica e embrulhadas em sofismas, em seu artigo. "A terra que se demarca é pública. Se tiver ocupantes não-indígenas, é grilagem, invasão. Não se indeniza o crime. Direito de propriedade? Quem ocupava a terra antes de nós, não-indígenas, chegarmos eram eles, os povos originários ou históricos da Amazônia. É a isto que a Constituição se refere ao reconhecer em seu artigo 231 'os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens'".
PARA QUEM ESCREVO Mais adiante, explica que ficou a imaginar o leitor do Brasil urbano, cheio de dúvidas e dívidas, insone com suas aflições cotidianas, diante do que escreveu. "Escrevo para a maioria dos brasileiros que se comove com o sofrimento das pessoas, mas que não consegue dimensionar a cultura, a beleza e a força dos povos indígenas. Aqueles que ainda não compreenderam como uma cultura baseada na oralidade pode ser tão potente e sofisticada.
Os brasileiros que estão longe e alheios, a ponto de não conseguirem ter a noção exata do que é uma pessoa indígena, agora têm a oportunidade para conhecê-los. Basta dedicar um pouco mais de uma hora e meia por noite, para assistir a dois documentários que acabam de ser lançados."
O Brasil pode não perceber, mas vivemos um momento de perigoso ataque frontal do agronegócio politicamente dominado pela lavoura arcaica contra os indígenas e suas terras. Este ataque é legislativo, mas tem o mesmo efeito do correntão na mata (técnica utilizada para derrubar a mata). O arrastão desfigurou os ministérios do Meio Ambiente e dos Povos indígenas. A Câmara dos Deputados aprovou o marco temporal, que destrói todo o arcabouço de proteção dos povos indígenas e transforma a demarcação de suas terras em um jogo marcado a favor dos invasores. Outras medidas de ataque ao meio ambiente e aos povos indígenas no âmbito do assédio legal estão também em curso. O marco temporal reúne o correntão e a draga. Destrói, mata e polui.
SOBRE VALE DOS ISOLADOS
O primoroso "Vale dos Isolados: o assassinato de Bruno e Dom", mais uma grande reportagem de Sonia Bridi e Paulo Zero, sob a forma de documentário, um lançamento da Globoplay, faz muito mais do que reconstruir minuciosamente o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. É um registro múltiplo que contrasta a beleza do Vale do Javari, a brutalidade inumana a que chegaram pessoas enredadas nas cadeias do crime organizado, a dedicação de indigenistas e a força natural e solidária dos indígenas.
É um espanto ver o contraste entre a frieza e o cinismo de assassinos, invasores de terras e a força dos valores que une não-indígenas aos povos do Vale. A coragem e o desprendimento de indigenistas que ajudam os indígenas a se organizar como guardiões da floresta, nas falhas evidentes da proteção estatal. A inteligência de povos como os Marubo, que destacam alguns dos seus parentes para irem para a cidade estudar, para poder defendê-los e apresentá-los ao Brasil e ao mundo com as ferramentas da sociedade urbano-tecnológica. Alguns se formam em direito para advogar a causa indígena. Outros em comunicação. Outros transferem o conhecimento oral para o papel, para que os não-indígenas possam conhecer suas ideias, sua cosmologia.
O documentário mostra evidências inéditas e chocantes do assassinato de Bruno e Dom, que continua impune. Registra depoimentos comoventes de companheiros do indigenista, que continuam seu trabalho, entre eles Orlando Possuelo e Carlos Travassos. Orlando é filho de Sidney Possuelo, da linhagem de indigenistas formada pelos irmãos Villas Boas, daí o seu nome. Já na adolescência, embrenhou-se na floresta com o pai, que presidiu a Funai e prestou muitos serviços à causa indígena. Foi ele que comandou a primeira desintrusão da massa de garimpeiros que ocupava a terra Yanomami, em 1991.
Carlos Travassos tem o combate pelas causas coletivas e a resistência à opressão no DNA. É filho de Luís Travassos, herói da resistência contra a ditadura militar, presidente da UNE, que foi preso no icônico congresso dos estudantes em Ibiúna, em 12 de outubro de 1968 e banido do Brasil em 1969.
A TERRA FOI RASGADA
Escute: a terra foi rasgada, documentário de Cassandra Mello e Fred Rahal, com produção da antropóloga Luisa Molina e dos jornalistas Bruno Weis e Roberto Almeida, do ISA, Instituto Socioambiental, desloca-se para outro território e põe a câmera na frente dos indígenas para contar mais uma história de resistência e união. Seu lançamento encontrou o espaço perfeito, a Mostra Ecofalante, já tradicional, na sua 12ª edição, que divulga anualmente os melhores documentários ambientais de todo o mundo. É uma importante reunião do ambientalismo e do filme documentário, um gênero de muita tradição e que tem pouca acolhida nas casas tradicionais. Hoje, felizmente, as principais plataformas de streaming têm uma seção para filmes do gênero.
A terra foi rasgada, conta como e por quê se formou a histórica e inédita aliança entre três povos. Os Yanomami, cuja terra fica na porção norte da floresta amazônica, no vale formado pelos rios Orinoco e Amazonas, vizinha aos estados do Amazonas e Roraima. Os Munduruku, cujo território é o vale do Tapajós, vizinho a sudoeste do estado do Pará, a leste do estado do Amazonas e ao norte do estado do Mato Grosso. O Mebêngôkre, que chamamos de Kayapó, cujo território é na região do rio Xingu, vizinho a norte do Mato Grosso e a sul do estado do Pará. Eles estão longe uns dos outros e, no passado, havia forte hostilidade entre os Mebêngôkre e os Munduruku. Mas decidiram se aliar para combater o maior e pior inimigo comum, os invasores de terra e os garimpeiros.
INTERPRETAÇÃO DO TÍTULO Interpreto o título deste documentário de duas maneiras. Primeiro, como um alerta, um chamado de atenção, "brasileiros, escutem, nossa terra foi rasgada". Segundo, um chamado a aprender a escutar com eles, "escute a terra ser rasgada". Nas duas interpretações, define-se o mesmo lugar de fala. O documentário, seguindo na trilha do cinema-verdade, da câmera-testemunha, põe a câmera e o microfone à disposição para que os indígenas contem sua saga. O que sofrem, como sofrem, o que os anima e alegra, e por que se convenceram a se unir para resistir ao invasor.
É quase um recuo até a luta ancestral contra os primeiros invasores. Por isso a demarcação de suas terras é parte da defesa, mas se o estado não as proteger, elas continuarão a ser usurpadas e destruídas por não-indígenas sem escrúpulos e incapazes de ouvir. De novo, não é para eles que escrevo. É para os que querem escutar.
O documentário vai captando os que eles falam. A conversa entre eles para persuadir os ainda indecisos da necessidade da união e da luta. A reminiscência sobre como chegaram até ali. Temos que ouvi-los sem entendê-los porque falam em suas línguas. Entendemos o que dizem na expressão de seus rostos e nas legendas.
Somos um país em que se fala aproximadamente 150 línguas mais uma, o português. Talvez mais de 151 línguas, pois há povos dos quais nada sabemos, porque estão isolados por vontade própria. Não entendemos as línguas dos indígenas, mas podemos perceber que há conceitos nossos que violentam suas terras e vidas, para os quais não têm palavras. Podemos entender em suas falas apenas os nossos conceitos, "garimpeiro", "madeireiro".
Há momentos de discursos orgulhosos, por exemplo, das mulheres contando como os homens de seus povos aceitaram que se tornassem liderança, adaptando seus costumes às novas circunstâncias. É o caso de Alesandra Korap Munduruku, liderança que já é histórica na luta indígena.
DEPOIMENTOS DOLOROSOS O documentário registra a troca geracional. Uma prova de que os indígenas não vivem parados no tempo, como imaginam seus inimigos do lado de cá do país. A liderança se renova para se juntar às já históricas. O filme mostra filhos e filhas de líderes que assumem que também se tornaram lideranças.
Há depoimentos dolorosos de dor e desalento, como o de Noemia Yanomami. "Eu não estou contente. Minha floresta já acabou. Minha terra verdadeiramente acabou. A terra ficou mesmo estragada. A terra rasgou eles dizem com raiva. A terra foi rasgada." Termina com um suspiro doído de desalento. Ela fala "terra rasgou" em português. Não tem o conceito. Quem tiver ouvidos de escutar, saberá como pode ajudar, como não-indígena, a causa desses nossos irmãos de longe.
FOTO: Interdição da rodovia Bandeirantes pelos indígenas do Jaraguá contra a PL 490 do marco temporal. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil.