Ao ver bolsonaristas implorando na frente dos quartéis do Exército a volta dos militares ao poder lembrei-me de uma história que me aconteceu nos anos iniciais do meu trabalho como repórter. Não lembro muitos dos detalhes. Mas recordo o essencial. Em um fim de semana da década de 80, eu estava de plantão na redação do jornal. Deu um rolo de polícia e acabei indo fazer a cobertura. Um grupo de agentes havia trocado tiros com uma quadrilha barra-pesada que operava no ramo de assalto, tráfico de drogas, furto e roubo de veículos na Região Metropolitana de Porto Alegre. Na batida policial houve mortes, feridos e presos. Logo que terminou tudo, alguns policiais estavam reunidos conversando. Conhecia um deles e foi ele que me chamou para me reunir com os seus colegas. Ele costumava me chamar de “meu amigo comunista”. Durante a conversa ouvi um deles dizer uma frase que nunca esqueci: “Coloquei o berro (revólver) na cara do meliante, ele gritou que eu tinha que ler os direitos dele”. No dia seguinte, publiquei uma matéria de pé de página. Para contextualizar a história, lembro que na época “direitos” era um palavrão no Brasil, porque o país ainda era governado pela ditadura militar (1964 a 1985), que impôs à população várias restrições, entre elas a censura à imprensa e aos conteúdos de filmes, músicas e outras manifestações culturais. Eram os anos da Guerra Fria (1947 a 1991), uma disputa ideológica entre os Estados Unidos, capitalistas, e a extinta União Soviética, comunista. O Brasil era aliado dos americanos, satélite como se chamava na época. Dentro desse contexto, de onde o bandido havia tirado a história dos direitos? É sobre isso que vamos conversar.
Já na época eu trabalhava com jornalismo investigativo e viajava muito. Mas sempre que estava em Porto Alegre participava da escala de plantão. Como disse no começo da nossa conversa, a história do policial sobre o preso falando em direitos tinha ficado anotada na minha mente. Em plantões seguintes comecei a escarafunchar a história. Conversando com presos e policiais. A resposta estava na minha cara o tempo todo e eu não tinha visto. Nas décadas de 60, 70 e 80 os canais de TV no Brasil mostravam semanalmente muitas séries de filmes americanos. O apelido desses filmes eram “enlatados americanos”, porque eles vendiam a ideologia capitalista nos seus conteúdos. A maioria das séries era de filmes policiais, como Havaí 5.0, Os Intocáveis e outros – há material na internet. Nesses filmes, sempre que um policial prendia um bandido, ele lia os direitos do preso. Foi daí que a história saiu. Conto até hoje essa história nas palestras que faço para estudantes de jornalismo e colegas nas redações do interior do Brasil. Graças à mobilização da sociedade, em 1985 os militares saíram do governo deixado atrás de si um país cheio de problemas econômicos, sociais, ambientais e uma baita confusão nos serviços públicos. Três anos depois, em 1988, foi publicada a Constituição, que garante os direitos e as obrigações dos brasileiros. Na noite de sexta-feira (03/11), troquei ideias com colegas da minha geração de repórter sobre o perfil dos manifestantes que estavam pedindo a volta dos militares na frente dos quartéis. Como toda a conversa de velho, foi um papo difícil de se chegar a uma conclusão. Mas algumas coisas são aproveitáveis e vou citá-las sem identificar os meus amigos.
Há muitos traços em comum entre eles. Mas um desses traços diz respeito ao nosso trabalho de jornalistas. Trata-se do fato de serem grandes consumidores de fake news. Os produtores de notícias falsas criaram um mundo de mentiras que os alimenta. Um dos meus amigos chamou a atenção para o seguinte. Disse ele: “Imagine o seguinte: um pastor neopentecostal repete uma fake news durante os seus sermões. O que ele disse passou a ser verdade”. Lembram da história da ex-ministra Damares Alves, que foi eleita senadora pelo Distrito Federal? Ela contou uma mentira mirabolante e absurda sobre tráfico de crianças para exploração sexual – matérias nos jornais.
Foi o mundo construído pelas fake news que levou uma boa parte dessa multidão a pedir a volta dos militares ao poder. E um dos esteios dessas notícias falsas são os chamados “lavadores de notícias”, que são emissoras de rádio, principalmente do interior, que as colocam no ar sem verificar se são verdades. E os pastores neopentecostais que as repetem em seus cultos. Durante a Guerra Fria, bilhões de dólares foram gastos pelos americanos e soviéticos em propaganda para convencer as populações sobre as belezas do capitalismo e do comunismo. Hoje, duas ou três pessoas reunidas em uma sala têm o poder de produzir mentiras e as espalhar pelo mundo simplesmente apertando um botão. Não tem como a imprensa tradicional combater isso. Mas alguma coisa precisa ser feita. Lembro que durante a ditadura militar surgiu no Brasil a imprensa alternativa, iniciativa de jornalistas que haviam perdido os seus empregos. Eles passaram a produzir jornais, revistas e outras publicações contando as histórias que a imprensa tradicional não podia contar, porque estava com censores do governo dentro das redações. Não era só pelas matérias inéditas que os alternativos chamavam a atenção dos leitores. Era também pelo fato de terem inventado uma maneira nova de contar uma história. A verdade pode estar coberta por centenas de toneladas de lixo. Mas sempre dá um jeito de atrair a nossa atenção. Lembram do caso do preso que pediu para o policial dizer os direitos dele? Justamente em uma época que a polícia era símbolo do pior que já existiu nesse país, como os esquadrões de justiceiros? Pois é. O preso viu a história dos direitos em um filme enlatado americano, tipo Havaí 5.0. Achou que aquilo era a rotina nas polícias. Não tinha ideia de que vivia em uma ditadura militar.
(*) Carlos Wagneré jornalista, repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, em São Paulo. Atualmente, Carlos Wagner é responsável pelo site Histórias Mal Contadas.