No mês passado li um livro maravilhoso do crítico, ensaísta, professor, psicanalista e economista, Enéas de Souza, Os Filmes Pensam o Mundo, lançado neste semestre pela ediPUCRS. Mais uma excelente contribuição deste grande mestre que analisa em profundidade o legado da sétima arte para a cultura humana. Numa linguagem fluente e ao mesmo tempo sofisticada, o autor se debruça sobre a obra de diretores brasileiros e estrangeiros que foram fundamentais para a cinematografia mundial. Fazem parte da obra artigos publicados na revista, Teorema, para qual Enéas escreveu, assiduamente, além de revisões e novas abordagens a luz dessa bela teoria onde “os filmes pensam o mundo”. Isso porque, além dos temas desenvolvidos pela narrativa através do roteiro escrito pelo autor e diretor, as locações, planos e enquadramentos, montagem, trilha sonora, elenco, diálogos e ações físicas constituem a forma concreta pela qual as ideias do roteiro se articulam e ganham vida, ultrapassando o sentido original e se constituindo numa obra com autonomia capaz de influenciar e provocar inúmeras leituras, além das propostas inicialmente. Essa capacidade de gerar uma multiplicidade de visões a partir de uma mesma obra atesta a potência da arte em geral, mas, em particular do cinema, por tratar de conteúdos conscientes e inconscientes de uma maneira mais imersiva e contundente. Cada artigo e capítulo vem embasado técnica e sensivelmente por quem ama o cinema e dedicou parte da sua vida a aprender a decifrar os seus mistérios. O pensamento contido no filme também espelha as forças ideológicas de determinado período que, por adesão ou oposição, mostram que o conteúdo simbólico expresso na obra, muitas vezes, vai além do que o autor imaginava.
Eduardo Coutinho, Walter Salles, Daniela Thomas, José Padilha, Jorge Furtado, Kleber Mendonça, Juliano Dornelles, Aly Muritiba e os mestres do Cinema Novo são revisitados através dos seus filmes cujas marcas trazem as vozes de um Brasil profundo ainda não completamente explorado e mostrado em sua multiplicidade. Enéas descobre que a força do cinema brasileiro está disponível para ser expressa em tantas vertentes quanto a diversidade e riqueza cultural do nosso imenso país, com tantos países dentro.
As escolhas dos filmes dos realizadores norte americanos e europeus nem sempre recaem sobre os ícones de sempre, mais conhecidos do grande público, o que, por si, valem para conferir a obra de diretores cuja abordagem oportuniza curiosidade e abertura para novas leituras do mundo. Estão lá Quentin Tarantino, Woody Allen, David Cronenberg, Abel Ferrara, Terence Malick, Michael Mann, Kathryn Bigelow e James Gray. Evidente que Enéas trata de Ingmar Bergman e Alain Resnais, mas traz Nani Moretti, Bruno Dumont e Andrey Zvyagintsev.
O mais interessante é que cada filme, por ele analisado, nos dá vontade de rever para encontrar detalhes e ideias que muitas vezes já esquecemos ou tenham passadas despercebidas. Além disso, renova a vontade de rever a obra completa destes artistas e conhecer os filmes de quem ainda não assistimos. Sua forma de rever os filmes para atingir novas percepções e decantar tantos conteúdos, impossíveis de apreender somente com a primeira leitura, nos dá a medida do seu compromisso com o cinema enquanto obra em construção e diálogo permanente com a sociedade. Porta de entrada para universos particulares, mas que podem ser vivenciados e pensados em conjunto.
Os Filmes Pensam o Mundo é um livro para ser saboreado com tranquilidade e parcimônia, pois nos faz lembrar, pensar e refletir sobre cada filme, temática e proposta de direção com grande profundidade e precisão. Detalhes de quem se atém ao cinema como ourives, escafandrista ou um arqueólogo paciente, um verdadeiro amante com disponibilidade e tempo para descobrir nuances, belezas e sutilezas que só se revelam com atenção, paciência e entrega.
Um livro para se ter ao alcance da mão e voltar, de tempos em tempos, como aos filmes que ele, generosamente, nos mostra guiando suavemente pela mão.
Porto Alegre, 18 de novembro de 2021.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.