Estava a fim de ler a biografia de Nara Leão, escrita pelo jornalista, Tom Cardoso, desde que foi lançada ainda em 2021. Ninguém Pode com Nara Leão, título da obra que foi, inteligentemente, pinçada de uma carta de Glauber Rocha para o Ruy Guerra mostra o avesso da menina tímida de voz doce, olhos mansos e modos discretos. Por debaixo do verniz de moça educada e bem-comportada, filha de um casal de classe média de Copacabana, havia uma personalidade forte e original em busca de se autoexpressar de acordo com suas convicções musicais e estéticas e nunca ao sabor de nenhum modismo, doutrinação política ou corrente artística. Ao contrário da irmã mais velha, Danusa Leão, uma das primeiras modelos de destaque nacional e internacional, de temperamento exuberante como o pai, o advogado Jairo Leão e, precocemente, casada com o jornalista Samuel Wainer, Nara, sempre foi mais parecida com a mãe, retraída, introspectiva e dada a grande sensibilidade com tendência para “curtir uma fossa”. Gíria popular, naquela época, para designar tendências depressivas. Sua inclinação para a música foi despertada pela coleção de discos de jazz, trazida na bagagem de Danuza, assim como o violão que a irmã recusou quando o pai contratou o violonista, Patrício Teixeira, para aulas particulares de violão. O dom musical que faltava à Danusa, em Nara abundava, naturalmente, e logo a adolescente estava dedilhando choros e maxixes com desenvoltura. Por sorte, os pais não se opunham a que as filhas fizessem amizades, fossem a praia e ao cinema e cultivassem atividades sociais. Ao contrário da maioria das famílias, seus pais eram mais liberais e abertos para o entrosamento com a diversidade do mundo.
O encontro de Nara com Roberto Menescal, seu vizinho e amigo, que também passou a frequentar as aulas com Patrício, foi fundamental para que, em pouco tempo, o apartamento de Nara, na Avenida Atlântica, se transformasse no QG da turma que daria forma e voz à bossa nova. Por ali passaram, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Chico Feitosa, Luiz Carlos Vinhas, Normando Santos, Oscar Castro Neves e o enigmático e talentoso João Gilberto. Evidente que havia outros nichos da mais nova bossa a ser parida na capital fluminense e, claro, Nara conviveu de perto com a nata deste reduto afortunado como Chico Buarque, Vinícius de Moraes e Tom Jobim.
Nara Leão era das poucas mulheres a frequentar o seleto clube de machos que, por sua vez, resistiam a integrá-la como participante ativa do movimento que surgia. Apesar da timidez para cantar sobre o palco, Nara batalhou para superar esse obstáculo e para iniciar uma carreira de caminhos variados e, aparentemente, contraditórios. O fato de ter feito análise, certamente deve ter ajudado essa ave rara a se lançar no espaço em vôos cada vez mais altos e ousados.
Considerada a Musa da Bossa Nova, pelos colegas admiradores e pela imprensa, Nara, nunca se sentiu confortável com os rótulos e prontamente os desconstruía à medida que surgiam. Prova disso foram as suas brigas com os chefes das gravadoras para valer a sua autonomia na escolha de repertório, músicos e arranjadores desde o princípio. Nara estreou em 1964 com um disco todo feito sobre sambas, NARA, e não sobre os sucessos da Bossa Nova que ela própria ajudou a criar e estava no auge do sucesso.
O regime militar se impôs, recrudesceu e, Nara cuja opinião era pólvora pura, haja visto o seu show de mesmo nome que o disco, Opinião de Nara, lançado na sequência, quase foi presa por não ter papas na língua e criticar o regime e, em particular, os militares. Nara teve a audácia de rugir contra os abusos de poder, uma das pouquíssimas vozes a se erguer contra o regime autoritário e as suas arbitrariedades. Foi marcada por isso, ainda que toda a classe artística tenha feito abaixo assinado a seu favor e, até Carlos Drummond de Andrade, escrevesse um apelo poético aos militares. Sua ficha no DOPS aumentaria paulatinamente ao longo da ditadura sendo uma das figuras públicas denunciadas para ser vigiada e contida. Nara fez parte indiretamente do Tropicalismo, movimento encabeçado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Rita Lee e os Mutantes, entre outros, por quem nutria grande admiração e simpatia. Nara também curtia Roberto Carlos e Erasmo Carlos e toda a turma do Iê,iê,iê. Namorou até Jerry Adriane e foi sempre duramente criticada por alguns colegas de classe e pela crítica especializada por sua natureza camaleônica, incapaz de se identificar, permanentemente, com uma só corrente. Como boa aquariana, Nara era de natureza veloz e voraz. Sua inquietude existencial característica, lhe pedia novidades, ao que ela não vacilava em experimentar e se arriscar. Depois que Caetano, Gil, Chico e Marieta foram obrigados a se exilar na Europa, ela também foi obrigada a sair, momentaneamente, de cena. Ao lado do cineasta, Cacá Diegues, com que se casou, Nara foi viver o exílio em Paris. Lá mesmo gravou seu 11º disco, Dez Anos Depois, uma antologia bossanovista com grandes sucessos cantados por ela na época. O lançamento foi um enorme sucesso e, no mesmo ano de 1971, Nara teve a sua primeira filha, Isabel.
Na volta ao Brasil, Nara seguiu se dividindo entre as funções maternas, a carreira musical e sua paixão pela psicologia que resolveu estudar para valer. Para tanto, terminou o ensino secundarista e passou no vestibular com excelentes notas. Ela também enfrentou o final de uma segunda gravidez, de alto risco, passando uma boa parte dela, deitada sem nenhum esforço para não prejudicar nem ela ou o bebê. Nasceu Francisco, o segundo filho do casal. Nara seguiu se equilibrando para dar conta de todos os seus compromissos domésticos e profissionais, ainda dentro de um regime de exceção. Viveu situações constrangedoras como quando foi presidente do corpo de jurados da sétima edição do Festival Internacional da Canção, inaugurando a transmissão em cores da TV Globo, e teve o seu nome vetado pelos militares que pressionaram a comissão organizadora e desligaram os microfones de artistas que protestaram contra o regime, assim como, deram uma surra, de quebrar costelas, no psicanalista Roberto Freire que leu, em pleno Maracanazinho, a carta demissionária de Nara Leão.
A barra seguiu pesada, mas, Nara seguiu pesquisando sobre a música brasileira e revelando novos talentos. Incansável, acabou pagando um preço bem alto pela sua independência e coerência. Infelizmente, um grave tumor no cérebro abreviou a vida dessa grande estrela, aos 47 anos e com 24 discos, numa carreira luminosa que mudou a música brasileira para melhor. Certamente se sua sede por sucesso e ambição fossem semelhantes ao que, muito se observa hoje em dia, ela teria alcançado em vida uma notoriedade ainda maior do que alcançou. Mas sua discrição e impaciência para com a mediocridade e sua recusa em servir, obedientemente, ao sistema, a colocaram à margem, fazendo parecer pouco a enorme influência que operou na MPB.
O livro narra a trajetória ímpar de uma mulher feminista, artista, engajada nos anseios populares e consciente de seu papel como artista com voz ativa e contra a corrente. Tom Cardoso conta essa bela história com fluência e elegância compondo um retrato complexo e multifacetado de Nara Leão. Leitura obrigatória para quem deseja conhecer um pouco mais a respeito de uma leoa cuja obra toca pouquíssimo na rádio, mas que possui valor de joia preciosa. O rugido de Nara segue ecoando em sua voz límpida e cristalina, revelando a ferocidade por trás da aparente maciez da fera.
Porto Alegre, 4 de junho de 2022.
(*) Nora Prado é atriz, poeta, professora de interpretação para Teatro e Cinema, atuou na Escola das Artes do Palco - SP.