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Foto do escritorAlexandre Costa

O 10º E ÚLTIMO EPISÓDIO DO DESAPAGA POA REMONTA "A HISTÓRIA DO CARNAVAL DE PORTO ALEGRE"


No último episódio da série, o Desapaga POA traz a história do carnaval porto-alegrense, dos entrudos, corsos e zé pereiras, passando pelos cordões dos Turunas, Prediletos e Os Tesouras, no Areal da Baronesa – e por personagens históricos como o Rei Momo Lelé, Lupicínio Rodrigues e a família Lucena, que trouxe para a cidade as escolas de samba. Uma linha do tempo da folia que termina com a sofrida rejeição à construção da pista de eventos nas imediações do centro e a transferência dos desfiles para o Porto Seco.


Neste episódio final, vamos contar uma parte da história do carnaval de Porto Alegre, desde as primeiras folias de rua com os entrudos, os blocos de corso, os cordões, ranchos e marchinhas, chegando aos carnavais da elite nos salões dos clubes sociais, em contraste com a festa popular do Rei Momo Lelé no Areal da Baronesa e os desfiles das escolas de samba, que repetem em Porto Alegre o modelo do carnaval carioca. Vamos também buscar as causas de uma parte da sociedade ter rejeitado a construção da Pista de Eventos nas proximidades do centro e a sua transferência para o Complexo Cultural do Porto Seco.




PARTE 1

O CARNAVAL DE PORTO ALEGRE


Orson Soares

O Carnaval no Brasil foi introduzido pelos portugueses, na passagem do século XVII para o XVIII. O entrudo foi a primeira manifestação carnavalesca do país, muito popular até meados do século XIX, quando a folia de rua começou a sofrer tentativas de organização, nos anos finais do Império.


Nesse momento, o entrudo caiu em desuso, dando lugar aos disciplinados cordões, ranchos e marchinhas. O entrudo era caracterizado pela ampla participação popular, a folia consistia em zombarias, em jogar recipientes cheios de água suja ou até mesmo urina nas pessoas em meio à agitação, e foi muito difundido no país.


O entrudo sofreu fortes críticas em relação ao seu aspecto violento e ofensivo e sobretudo popular com a participação dos escravizados nesse tipo de folia. As elites começaram a participar dos bailes de carnaval, em um espaço disciplinado e selecionado em que era tocada a polca e o entrudo foi aos poucos desaparecendo.


Outra manifestação carnavalesca muito popular foram os chamados “Zé Pereiras”. Difundido por todo Brasil, também de origem portuguesa, foi ganhando características próprias no Rio de Janeiro. O Zé Pereira tradicional caracterizava-se por um desfile tipo as procissões populares, no qual se salientavam os tocadores de grandes bumbos. O cronista Achylles Porto Alegre descreveu o surgimento do Zé Pereira na capital dos gaúchos, da seguinte maneira:

“Já por este tempo o ‘Zé Pereira’, barulhento, ia inaugurando aqui e ali as suas ‘cavernas’, com enorme pânico para o vizindário, que até altas horas da noite tinha que suportar o ensurdecedor ‘zabumba’, o agudo ‘cornetear’ e ‘bestealogicos’ dos oradores improvisados que, com ares demostênicos e gesticular ‘cicereano’, arrastavam a gramática pela Rua da Amargura e, pelo espírito e ou pelo ‘despropósito’, nos faziam rir às bandeiras desbragadas. [...] E esta exibição humorística de uma originalíssima hilaridade palhacesca aumentou, a ponto de retomar a ‘great-attraction’ das ruas”.


Em 1872, 16 anos antes da abolição da escravidão no Brasil, em 31 de dezembro, surgia uma sociedade de negros, a Sociedade Floresta Aurora, mas somente em 1885 ela iniciaria sua participação nos desfiles de carnaval das sociedades de Porto Alegre. Já no início do século XX, no ano de 1902, foi fundada outra sociedade que ficou igualmente marcada na memória da comunidade negra local: o Satélite Porto-Alegrense, mais tarde conhecido como Satélite Prontidão.


O surgimento das sociedades negras foi uma resposta à exclusão social, num contexto de discriminação, e também a manifestação de um desejo de inclusão dessa comunidade na vida social da cidade. Nestes espaços de sociabilidades, eram também debatidos temas sociais, de difusão de cultura e de organização da comunidade negra. Além disso, constituíram lugares que marcaram o carnaval da cidade com seus bailes e corsos. Os corsos eram desfiles de carros ornamentados, promovidos por sociedades no período do carnaval. A Sociedade Satélite destacava-se sempre, nesses desfiles, por suas rainhas, como lembra Nilo Feijó.


Em oposição às festas da elite, os negros encontraram nas ruas o espaço para seu divertimento, destacando-se nas periferias da cidade daquele tempo, como a Cidade Baixa - especificamente o Areal da Baronesa e a Colônia Africana, entre outros pontos também considerados como lugares de negros.


Nilo Feijó recorda quando o Carnaval entrou em uma nova fase. Um novo momento que trazia os blocos de carnaval e os cordões, destacando-se pela simplicidade da fantasia, apresentando um colorido das lanternas e a competência de Lupicínio Rodrigues que, aos 14 anos, compôs a música “Carnaval” para o cordão Os Prediletos. Os cordões eram chamados assim por se parecerem com uma longa fila, lembrando uma procissão, em que pessoas fantasiadas de temas variados desfilavam pelas ruas durante o Carnaval.


Em Porto Alegre, os cordões Turunas, Tesouras, Prediletos, Chora na Esquina, Fazendeiros, Divertidos e Atravessados, Passa Fome e Anda Gordo, Ideal da Zona, Filhos do Sul, entre outros, figuravam o cast da folia. E entre as figuras mais conhecidas estavam Jhonson, Caco Velho, João Pena, Nelson Lucena, Veridiano Farias, Albino Rosa, Alberto Martiano, além do já mencionado Lupi, que se destacavam como compositores dos cordões.


Havia os ranchos, que eram desfiles em forma de cortejos, praticados e influenciados pelas festividades da zona rural nordestina. Esse desfile contava com a presença de um rei e uma rainha. É nessa manifestação carnavalesca que aparecem os portas estandartes e mestre salas. Ao som de uma marcha-rancho, acompanhado por instrumentos de sopro e corda, um ritmo mais pausado que o samba, onde não se usava instrumentos de percussão.


Os blocos carnavalescos se colocavam em um meio termo entre o rancho e os cordões.

Todas essas manifestações carnavalescas estão na raiz das conhecidas escolas de samba. Os blocos normalmente caracterizados pelo improviso e a irreverência, costumam arrastar multidões no período do carnaval.


AS TRIBOS CARNAVALESCAS

As tribos carnavalescas surgiram no cenário do carnaval porto–alegrense nos anos de 1940, aparecendo como alternativa popular aos carnavais de salão. Em entrevista para Paula Sperb, repórter do Jornal Folha de São Paulo, o doutor em Letras pela UFRGS, Jackson Raymundo - que pesquisou sobre as tribos carnavalescas de Porto Alegre -, nos informa como elas surgiram, pontuando as diferenças entre Tribos e Escolas de Samba. Conforme o pesquisador:

“As tribos carnavalescas nasceram em um contexto de afirmação da nacionalidade brasileira. Nessa nacionalidade, todo mundo via o indígena não como exótico, mas como parte de um todo. Esse todo era um ser brasileiro.”


O número de tribos carnavalescas chegou a ser superior ao das Escolas de Samba, mais ou menos 17 entidades com nomes diversos: Charruas, Tupinambás, Navajos, Comanches. A primeira tribo carnavalesca foi fundada em 1945: os Caetés; e em 1959 surgiu a dos Guaianazes.


A nova forma de manifestação carnavalesca surgiu nas periferias da cidade, com diferenças em relação às escolas de samba. As tribos faziam um desfile que em certo momento era paralisado para que fosse realizada uma encenação, o que normalmente remetia à ideia de ritual indígena e não cantavam um samba, e sim um hino, que tinha características poéticas e melódicas.


Outra diferença das tribos em relação às escolas de samba, era a nomenclatura de seus espaços de concentração, chamados de tabas, diferente das escolas, que se reuniam nas quadras de ensaio, destaca Jackson Raymundo.


Conforme Joaquim Lucena Neto, em 1939 foi fundada a primeira entidade carnavalesca enquadrada neste então novo universo chamado de “escolas de samba”. Era a Loucos de Alegria. A ideia, importada do Rio de Janeiro, encontrou boa acolhida. Nelson Lucena, pai de Joaquim, e seu irmão Joaquim Lucena Filho, foram os fundadores da Escola da Samba que contou com ainda com a participação ativa de Valdemar Lucena, Oswaldo e Mario Barcelos e Heitor Barros. No ano seguinte, a família Lucena deixou a Loucos de Alegria e fundou a Gente do Morro. Foi o início da “cariocarização” do carnaval da capital dos gaúchos.


Na década de 1960, a Academia de Samba Praiana - de onde se destacaram figuras emblemáticas como Giba Giba - foi a protagonista nas inovações nos desfiles da capital. A referida agremiação apresentou uma estrutura de carnaval inspirada nas Escolas do Rio, com muito luxo e organização.


Lucena destaca que em 1972 a Academia de Samba Relâmpago apresentou uma inovação trazida de terras cariocas. Seria um novo ritmo, introduzindo o repenique e o maracanã. Além das novidades no samba, trazia também, a estruturação do carnaval, direção empresarial, quadras de ensaio, gravações de samba enredo e participação em projetos sociais.


Um samba com sotaque? Reza a lenda que Mestre Marçal, uma das figuras mais icônicas do universo do samba carioca, ficou impressionado com o ritmo do samba tocado aqui em Porto Alegre. Quem conta esta história é o documentarista e pesquisador Claudinho Pereira .


“Certa vez, recebendo em Porto Alegre o grande mestre Marçal, víamos e ouvíamos o desfile das escolas de samba da Cidade quando percebi que ele ficou encantado com o ritmo apresentado na avenida. Burramente falei para o mestre que o samba das nossas escolas deveria ter uma batida mais lenta, menos acelerada – como a das escolas do Rio de Janeiro. Marçal me olhou com um ar estranho e respondeu: ‘Aqui, o samba-enredo é lindo no ritmo e tem uma cadência que eu nunca tinha ouvido. E esta é a beleza do samba da sua terra; tem um diferencial do samba ouvido no resto do país.’ O samba é isso: assim como o jazz, o samba tem variações em cima de seu ritmo.”


Os desfiles das escolas de samba - antes da existência do Complexo Cultural do Porto Seco, aconteciam em diversos espaços, entre o centro e a cidade baixa. Ao todo foram 12 lugares diferentes de desfiles, em 1949, o primeiro foi realizado na antiga Praça Senador Florêncio, hoje Praça da Alfândega. Os lugares em que os desfiles permaneceram por mais tempo foram na Avenida Loureiro da Silva (Avenida Perimetral) de 1970 até o ano de 1980, quando passaram a acontecer na Avenida Augusto de Carvalho, até o ano de 2003, tendo sido depois transferidos para o Complexo Cultural Porto Seco. Com um tom de lamento, Joaquim Lucena Neto refletiu sobre a mudança do local:

“Hoje atiram as cinzas do Carnaval no Porto Seco, mas esqueceram de tirar as brasas. Tenho certeza de que elas ainda acenderão a chama da cultura. Esta nunca se apagará e o sambista poderá cantar... ‘A vida só tem valor com o samba/ o povo sorrindo/a avenida se abrindo’... Infelizmente, sempre foi assim... pobre Carnaval!


No ritmo da bateria e na cantoria do povo, o esplendor de um samba com sotaque próprio, uma saudade imensa, nos faz perguntar. Carnaval, quando tu vais voltar?


Para ilustrar esta história, o DESAPAGA POA ouviu com exclusividade um dos profissionais de imprensa que mais vivenciou e conhece o carnaval da capital gaúcha, o jornalista e radialista Cláudio Brito:

"Os bambas criaram fama lá no bairro da Santana, até chegar no desfile principal, quem é que não se lembra do esplendor da Broadway, da Festa dos Navegantes, o Guarani foi uma página marcante, e a passagem tão bela, dos Bambas em tempo de Portela".


PARTE 2

A PERIFERIZAÇÃO DOS DESFILES DO CARNAVAL DE PORTO ALEGRE


Carlos Raimundo Pereira

Em 1980, a Escola de Samba Sociedade Beneficente Cultural Bambas da Orgia desfilou e venceu no carnaval de Porto Alegre contando e cantando os seus quarenta anos de existência. Os versos desta estrofe que ouvimos há pouco, dentro do que as liberdades poéticas permitiram aos autores Jajá e Júlio Alves, descrevem uma transformação no carnaval da cidade, que saiu dos bairros e dos blocos e cordões e foi para a avenida com suas escolas de samba, num processo que a historiadora Helena Cancela Cattani classificou de cariocalização.


A escola de samba Academia de Samba Praiana, em 1961, foi a primeira a desfilar com alas e muitos mais componentes, como no Rio de Janeiro, no que foi seguida pelas demais em anos seguintes. Fez-se uma tendência e o evento começou a crescer, consolidando-se, sendo sediado por 40 anos nas avenidas da região central da cidade.


Atualmente, os desfiles ocorrem no Porto Seco, no bairro Rubem Berta, na Zona Norte, bem distante do local onde nasceu o carnaval, das cercanias do Centro e da Cidade Baixa.


Mas e esta foi uma mudança pacífica e natural?

Ou repetia desfechos históricos, como a transferência das Quitandeiras da Alfândega para a Praça do Paraíso, por volta de 1820; ou como a remoção das lavadeiras para o riacho, impostas pelo primeiro código de posturas no início do século XX; ou como a retirada dos moradores das proximidades da Ponte dos Açorianos para a construção do Viaduto da Borges; ou como a transferência de grande parte dos habitantes da Ilhota para a Restinga? O povo pobre e negro de Porto Alegre tem motivos para manter traumas com remoções abruptas.


Com certeza a mudança ocorrida não foi pacífica. A discussão foi ampla, envolvendo representações e pertencimentos, e há de se considerar que, esse processo de construção de uma pista de eventos no Porto Seco, teve, como uma de suas consequências, a periferização também dos desfiles das escolas de samba no carnaval da cidade.


Porto Alegre nasceu e se formou entre as águas. É portuária no nome, cresceu capital e teve um povoamento característico das grandes metrópoles brasileiras, e como todas, uma organização social marcada pela desigualdade, uma desigualdade que se estabeleceu também por meio de segregação social histórica, com suas consequências.


Depois de vinte anos de ditadura militar, repressão política e censura, em 1985, no contexto da redemocratização do país, as capitais brasileiras voltaram a eleger seus prefeitos e vereadores pelo voto direto. Porto Alegre - onde havia uma grande expectativa com o retorno de Leonel Brizola do exílio - elegeu um Prefeito Trabalhista, Alceu Collares, do PDT. Um prefeito negro, advogado, oriundo do MDB, movimento adversário do partido de sustentação da Ditadura Militar, a Arena. Na eleição seguinte, Olívio Dutra, o primeiro prefeito na história do Partido dos Trabalhadores na capital, um sindicalista militante do SindBancários, sucedeu Colares.


Porto Alegre viveria então uma longa sequência de governos democrático-populares, já sob as luzes da Constituição Cidadã, de 1988.


Ambas as gestões trouxeram propostas inovadoras na relação da cidade com suas periferias. Os conselhos populares e uma forte ligação com as associações comunitárias nos diversos bairros na gestão de Alceu Collares e o Orçamento Participativo - que se tornou mundialmente reconhecido - nas gestões do Partido dos Trabalhadores demarcam bem esta tendência.


No Rio de Janeiro, nos anos 1980, com Leonel Brizola eleito governador, o governo do Estado entregaria à cidade, e em especial ao Carnaval, um Sambódromo projetado por Oscar Niemeyer. Uma grande estrutura que abarcaria além dos desfiles de escolas de samba, outras atividades culturais e educacionais ao longo do ano, como os CIEPs, as escolas de tempo integral. Não por acaso o nome oficial do sambódromo carioca é Passarela Professor Darcy Ribeiro.

Desde então, Porto Alegre passou a desejar algo semelhante, que além do Carnaval pudesse abrigar os desfiles dos dias 7 e 20 de Setembro, e que fosse também um centro cultural. Os desfiles na avenida Augusto de Carvalho, ao lado do Parque da Harmonia, se davam com o erguimento de estruturas provisórias, e foi na gestão de Collares, correligionário de Brizola, que surgiram os primeiros movimentos visando a construção de uma pista de eventos, tal qual o sambódromo carioca.


Evitava-se usar a designação sambódromo, para que os movimentos de setembro não se sentissem incluídos e para que se pudesse consolidar a intenção de construção de um equipamento que beneficiasse toda a cidade, justificando amplamente o investimento público.


PROJETO DA NOVA PISTA FOI APRESENTADO EM 1994

Em 1994, um projeto de construção de uma pista de eventos foi apresentado pelo executivo ao legislativo da cidade, e como num processo natural de continuidade, a avenida Augusto de Carvalho foi sugerida como local para a estrutura. O otimismo dos envolvidos na elaboração do projeto e dos carnavalescos da cidade fez-se pensar, à época, que aquele seria o último carnaval com as estruturas provisórias, não foi.


Ao longo do ano, cada vez mais justificativas contrárias ao projeto foram sendo apresentadas. Uma comissão especial foi instaurada na Câmara de Vereadores, com o relator apresentando uma negativa ao final, baseada em questões ambientais.


Em verdade, não havia grandes problemas do ponto de vista ambiental. A avenida Augusto de Carvalho era uma área de aterro, onde atualmente estão parques e diversos edifícios de órgãos públicos foram construídos ao seu redor no mesmo período, sem encontrar percalços. Mas causalmente partiram desses órgãos as primeiras manifestações negativas, que alegavam que os dias agitados de carnaval neste entorno prejudicava os processos públicos e sua integridade, confrontando ainda com a ideia de construção de um centro administrativo federal na área onde hoje estão os edifícios da Justiça e da Receita Federal.


Os moradores do centro se manifestaram contrários através de sua associação, alegando que sofreriam problemas com os ruídos, insegurança, desordem, estragos e, na mesma frequência dos órgãos públicos, mostravam-se preocupados com as consequências da realização do evento de carnaval.


Neste ponto principiou uma dissociação. As preocupações se mostravam unicamente direcionadas aos dias de Momo, sem nenhum posicionamento contrário aos dias de desfiles cívico-militares e ou do desfile regionalista de setembro. Aliás, o movimento tradicionalista nunca demonstrou interesse em se somar aos esforços pela construção de uma estrutura de uso comum com os carnavalescos, pois não consideravam o Carnaval uma manifestação da cultura regional.


O ambiente controverso contribuiu para que a discussão se prolongasse então por dez anos. A historiadora Laura Galli, em sua dissertação de mestrado, aprofundou-se na análise dos jornais e documentos municipais deste período entre 1994, quando da apresentação do primeiro projeto pelo executivo municipal, até 2004, ano do primeiro desfile nas novas instalações no Porto Seco.


O projeto da Prefeitura, apresentado em 1994, no mandato do então Prefeito Tarso Genro, entre comissões especiais estabelecidas, manifestações de moradores e instituições ambientais, e decisões políticas e jurídicas, tramitou até ser rejeitado ao final daquele ano.


Em 1995 foi reapresentado e voltou a ser rejeitado. A negativa se embasava no suposto impacto ambiental, mas o referido impacto era apenas um cortinamento do real motivo da contrariedade daqueles que se insurgiram contra a proposta. Por trás da cena, estava um preconceito escancarado com o carnaval e suas raízes negras. Negava-se à festa mais negra da cidade o direito de ter um lugar onde ela havia nascido, lugar que se transformara em área nobre da cidade, habitada por uma classe média remediada, mas que se identificava com valores elitistas e conservadores.


Entre 1997 e 98, na gestão do Prefeito Raul Pont, terceiro mandato consecutivo do Partido dos Trabalhadores à frente da Prefeitura, o executivo assumiu a competência de execução do projeto e lançou um edital orçamentário, que em seguida foi suspenso por liminar com base no embargo anterior ao projeto.


A localização inicialmente proposta, na Avenida Augusto de Carvalho, foi então trocada pela Prefeitura para o bairro Menino Deus, próximo ao Parque Marinha do Brasil e ao estádio Beira Rio. Justificou-se a recorrente negativa pelas mesmas pressões de moradores e de possíveis impactos ambientais, e neste caso, ainda pela proximidade com um hospital e asilo do bairro.


Houve manifestações públicas dos dois lados, caminhada e apitaço em ruas e esquinas demonstrando a insatisfação de um grupo de moradores que não queria o sambódromo. No centro da cidade, encontros de entidades carnavalescas faziam o contraponto na tradicional Esquina Democrática, ou em ritmo de samba no Largo Glênio Peres, a favor da construção da pista.


A proximidade com um período eleitoral incensou o debate e acusações de fraudes financeiras com recursos municipais para o carnaval resultaram na instalação de uma CPI na Câmara dos Vereadores. Novamente o projeto de construção de uma pista de eventos foi paralizado, e a CPI, inócua, de oportunismo eleitoreiro, ficou também pelo caminho.


Fracassadas as iniciativas de 1994 e 1999, em 2001 o ponto de debate passou a ser a escolha do local onde seria construído o sambódromo de Porto Alegre, diante do consenso que antes não havia de que o carnaval deveria ter o seu templo na cidade, a sua pista de eventos e o lugar dos barracões das escolas de samba.


Os de setembro, tanto o militar como o tradicionalista permaneceram com seu lugar de sempre na área central, consolidando-se a situação de desalojado, despejado e sem-teto do carnaval.


Dez regiões foram mapeadas, entre elas o Porto Seco, inicialmente descartado, assim como a Restinga, a Augusto de Carvalho e a orla do Guaíba foram novamente deixadas de lado. O Hipódromo do Cristal, a área da Viação Férrea, a Hípica, uma a uma, ou por não atender os requisitos ou por somente atendê-los parcialmente, foram sendo descartadas. Com sete descartes, os três possíveis locais que permaneceram na disputa eram na Zona Norte: nas proximidades das avenidas Voluntários da Pátria, Neugebauer e A J Renner, sendo esta última, no bairro Humaitá, a preferida pela comissão criada para definir a questão.


Novamente surgiu um movimento de moradores, inclusive com um abaixo-assinado de cinco mil assinaturas, posicionando-se contrário às pretensões de execução do projeto, sob as mesmas alegações anteriores: barulho, perturbação do sossego, segurança, etc. Havia um outro e importante aspecto a considerar, era recente aprovação no Orçamento Participativo da construção de três mil casas populares na região, uma concomitância de projetos em proximidade de tempo e espaço que poderia ser prejudicial a ambos.


Assim, em conformidade com o que vinha acontecendo, comissão após comissão, ano após ano, seguiu a pista de eventos de Porto Alegre o seu destino de impasse, até que, invertendo a ordem dos processos, duas comunidades se manifestaram desejando sediar o carnaval da cidade: "se o Humaitá não quer, nós queremos!" Restinga e Porto Seco ofereceram-se e a comissão e o executivo, que os havia descartado, diante da controversa escolha, viu-se então entre estas três opções: Humaitá - de onde vinha um não; Restinga e Porto Seco, que se manifestavam com um sim.


A ESCOLHA DO PORTO SECO PELO CONSELHO DO PLANO DIRETOR

O Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano e Ambiental (CMDUA), reconhecido simplesmente por Conselho do Plano Diretor, procedeu então uma votação. A preferência do executivo era pelo Porto Seco, a maior parte das entidades carnavalescas consideravam o Humaitá mais adequado, e com menores chances, porém com apoio de sua comunidade, apresentava-se a Restinga.


Com seus 25 integrantes entre representantes dos poderes público federal, estadual e municipal, de entidades ligadas ao planejamento urbano e representantes das oito regiões do Orçamento Participativo, o Conselho do Plano - entre estudos, análises e discussões - partiu para a votação, resultando o pleito em 12 votos pelo Porto Seco, 7 para a Restinga, 3 para o Humaitá e duas abstenções.


As entidades carnavalescas, que preferiam o Humaitá, mesmo diante da oposição de parte daquela comunidade, disseram que se sentiram traídas com cinco votos que teriam sido alterados, mudando o resultado da votação.


Tradicionalistas, para não se afastarem do local do acampamento farroupilha, e militares, para que os desfiles fossem mantidos perto do centro, garantiram que continuariam utilizando a avenida Augusto de Carvalho. Os empresários transportadores instalados no Porto Seco, por questões de logística, se manifestaram contra a decisão. A definição teve uma única aprovação inconteste: a dos moradores do bairro Rubem Berta, que viram na obra a possibilidade de investimentos e melhorias de infraestrutura e serviços na sua região.


Além da resistência inicial dos empresários, houve ainda um outro problema para a Prefeitura solucionar, que advinha das famílias que ocupavam o local definido para receber a nova pista de desfiles do carnaval, numa área de ocupação.


Os desfiles de 2002 e 2003 ainda foram nas instalações provisórias da Augusto de Carvalho, e em fevereiro de 2004, nas instalações, em parte também ainda provisórias, no Porto Seco, inaugurado sem que o projeto proposto tivesse sido integralmente concluído. A obras de implantação do Complexo Cultural do Porto Seco foi uma das principais realizações da gestão do ex-Prefeito João Verle, que substituiu Tarso Genro, que deixara a Prefeitura em 2002 para disputar as eleições para o Governo do Estado.


Margarete Moraes, que foi vereadora e secretária de Cultura de Porto Alegre, comenta este contexto de transferência do carnaval para o Porto Seco, mas valoriza a obra realizada pela Administração Popular:

Os barracões somente foram entregues para o carnaval de 2005 e as arquibancadas e camarotes seguem até hoje sendo provisórios.


Estacionamento, banheiros, serviços, estruturas para oficinas passaram a ser resolvidos por cada uma das escolas em seu espaço de barracão, o grande acréscimo às estruturas das escolas, algo há muito almejado, cuja necessidade de existência era percebida pela população em geral sempre que um carro alegórico trancava o trânsito ou que se exigia até remoção de uma parada de ônibus para que o carro passasse nos dias de desfile de carnaval.


Os barracões também eram vistos como a grande solução para a continuidade do carnaval - o carnaval o ano inteiro - e sua profissionalização, visando inclusive atrair turistas para Porto Alegre. No estilo do carnaval carioca, com escolas de samba desfilando ala por ala numa avenida, o carnaval da capital gaúcha estava entre os maiores do Brasil, em público e desempenho artístico, alegorias, passistas, destaques, porta-estandartes, baterias, intérpretes de samba-enredo e fantasias.


As novas instalações eram também uma esperança de fortalecimento da chamada economia do carnaval com suas costureiras, figurinistas e seus diversos profissionais envolvidos, da música à decoração do carro alegórico. Antes da sua existência, grande parte do que era preparado num ano acabava perdido para o outro, da cola aos adereços, e tudo tinha que ser novamente comprado para que o carnaval ocorresse.


O Complexo Cultural do Porto Seco queria ser também um polo de desenvolvimento econômico e social que traria um projeto urbanístico para a região até hoje ainda pouco valorizada, ideias que ficaram pelo caminho com as mudanças de governo a partir de 2005 e com a mudança de foco dos prefeitos que se seguiram.


De fato, na esteira de construções de pistas de eventos no modelo sambódromo carioca que se espalhou pelo país, Porto Alegre transferiu o evento de escolas de samba, dissociando-o dos momentos setembrinos. Construiu um lugar para os desfiles de carnaval, mas outra vez se colocou diante do dilema tantas vezes repeitdos: o da periferização de tudo que é dos negros, caracterizando mais uma das diásporas urbanísticas da cidade.


Desse modo, é de se perguntar realmente: e o Carnaval? Quando voltará o Carnaval?

"Eu sou passado, eu sou presente, eu sou futuro, sou bem feliz por isso eu vivo a cantar, batam palmas batam palmas, para me felicitar, hoje estou de aniversário e o que eu quero é sambar, na passarela..."

(1980 - Magia e Esplendor de Quatro Décadas de Glória: 40 Anos de Bambas)


DEPOIMENTO DA ATUAL PRESIDENTE DA IMPERADORES DO SAMBA/ LUANA COSTA Olá, pessoal. Eu sou Luana Costa, primeira mulher presidente da Imperadores do Samba, que é uma das mais vitoriosas e tradicionais do carnaval de Porto Alegre, que possui uma grande comunidade e mobiliza milhares de pessoas durante o ano inteiro. A Imperadores tem uma grande contribuição nos cenários social e cultural da cidade, com reconhecimento em todo o Brasil.

Eu tenho, sim, muita esperança no carnaval de Porto Alegre, apesar de estarmos passando pelo pior momento da história dessa manifestação cultural. O carnaval de Porto Alegre começou a se enfraquecer em 2017, quando houve um rompimento da relação com o poder público, que até então auxiliava as escolas de samba com apoio financeiro e na estruturação do Complexo do Porto Seco.

Com a saída do governo Marchezan e a entrada do governo Melo nós recuperamos a esperança de diálogo porque o novo governo tem demonstrado uma postura um pouco diferente. Mas infelizmente ainda não tivemos ações efetivas, talvez por conta da pandemia da COVID-19.

O carnaval vive hoje exclusivamente da sua comunidade. Precisamos fazer eventos para garantir arrecadação, gerando aglomeração de pessoas. Mas não podemos fazer isto em função da pandemia. Então o que precisamos? Precisamos ter de volta o apoio do poder público porque cultura é um direito. O carnaval, além da contribuição cultural, gera empregos, gera impostos, principalmente em Porto Alegre, que fica praticamente parada durante o verão, momento em que as quadras das escolas de samba não param e os barracões trabalham a todo vapor. Além disso, em Porto Alegre fazemos sim carnaval o ano inteiro.


Hoje, as comunidades das escolas de samba, mais do que nunca, têm tido uma grande atuação social. As quadras, hoje, têm sido espaços de ações sociais de arrecadação de alimentos, de agasalhos. Na quadra da Imperadores tivemos vacinação, tornando a escola a primeira do Sul do Brasil a se transformar em posto de vacinação. Isto mostra que a comunidade, apesar do mau momento, está dentro da escola atuando de alguma forma.


A nossa eleição na Imperadores renovou a esperança da nossa comunidade, que voltou para dentro da escola com mais força, com mais garra e é isso que me faz acreditar que, sim, nós vamos superar este momento difícil. A união, o amor, o esforço de toda a comunidade carnavalesca, com certeza, não deixarão o samba morrer.


A pesquisa e os textos deste episódio sobre o carnaval foram de Carlos Raimundo Pereira e Orson Soares, com colaboração de Jane Mattos e Pedro Vargas. A locução dos áudios é de Lucas Samuel, Clara Falcão, Leila Mattos e Carlos Raimundo Pereira. A montagem e a trilha sonora têm a direção e criação de Bebeto Alves com finalização de Bernardo Molleta. O marketing é da Ju e a edição é de Vitor Ortiz.


Este projeto foi selecionado no edital Criação e Formação Diversidade das Culturas, da Secretaria Estadual da Cultura - SEDAC/RS - e Fundação Marcopolo e é realizado com recursos da Lei 14.017 de 2020 (a Lei Aldir Blanc).


Os textos dos roteiros, a bibliografia e imagens ficam disponíveis no site: www.matinaljornalismo.com.br/desapagapoa/

@fundacaomarcopolo


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