As eleições para o CTG se deram cheias de tumulto, peleias verbais que quase desaguam em duelos de facão e adaga, uma escaramuça de deixar todo o povo envergonhado na manhã do dia seguinte. Nem todo o povo, é vero, porque alguns compadres nem repousaram o cabeção no travesseiro. Ficaram queimando os miolos e mirando o orgulho ferido, matutando jeitos de vingança e represália. A cizânia é fácil de engendrar e alimentar, é como salgar a terra, como erva daninha, praga de gafanhoto, invasão de zumbis, quando menos se espera, em um descuido e distração, lá se vão anos de trabalho na lavoura, na horta, no jardim, nas relações bonitas da comunidade. Até os bichinhos ficam jururus. O respeito e as amizades vão pelo ralo. Minha filha diz que a ignorância e a vaidade são como cancelas que não deixam o pensamento, a sabedoria e os afetos cruzarem e germinarem. Parece que um teco-teco jogou inseticida sobre o povoado porque a gente ficou transtornada, olhos vermelhos de raiva, bocas abertas para mil ofensas, ameaças de quebrar o outro, rostos crispados. Abelhas mortas não produzem mel, videiras envenenadas não produzem vinho, coração e mente fechados não produzem amor nem boas ideias. Tudo isso que lhes conto, se deu porque minha mãe encerrou a gestão à frente do CTG e não quis continuar por causa da idade, embora o apelo das comadres. Vendo a oportunidade, alguns compadres saudosos dos tempos em que um mandava e o resto obedecia, se organizaram para retomar a direção e restaurar as figuras do patrão, capataz e peão. Mulher não pode estar à frente dos homens, é uma vergonha; mulher tem que seguir o pai, o namorado, o noivo e o marido, porque isso é o certo. Viado e sapatona não podem porque são maus exemplos para os piás, são uma distorção do que o patrão do céu deseja. O contrário disso é ideologia de gênero, gritavam nas cavalgadas durante a campanha. Um deles se negou a votar porque a mesária era uma mulher preta. Minha mãe, com toda a paciência do mundo, no debate entre os dois grupos, pontuou que “a ideologia de gênero surgiu nos anos 90, mas já fora insinuada lá pelos 50, inventada por bispos conservadores da igreja católica tementes do divórcio, das múltiplas formas de arranjo familiar, das relações homoafetivas e da alegria. O racismo e a perversa ideologia de gênero estão em vocês ao atribuírem às mulheres papéis secundários e de sujeição, ao discriminarem pretos, gays e lésbicas”. E sentenciou: “o patrão do céu é coisa de criança. Assumam a cretinice de suas ideias”. As comadres Karolina, Letícia, Marina e Maria, formavam a chapa para dar sequência às mudanças que minha mãe começou, arejando as relações hierárquicas, abrindo espaço e tempo de fala e participação, tratando com respeito e sem preconceito. Mas o que mais chateou a compadralhada alvoroçada foi a substituição do retrato do Bento Gonçalves e do panteão farroupilha pelos retratos de uma mulher preta do Quilombo, uma líder indígena, uma professora e uma agricultora. Acusaram minha mãe de tudo o que é coisa: comunistinha, mimimi, velha louca, feminista e vagabunda... Ela ouvia as ofensas e pensava: “essa gente tapada tem medo da alegria, do amor e do respeito. Só se sente bem se tiver o povaréu submisso e pobre. Que triste”. A chapa de Maria, Letícia, Karolina e Marina venceu de lavada as eleições. Foi uma festa linda, mas parte dos perdedores ficou contrariada e não aceitou o resultado. Ameaçou pegar as espingardas e dar um golpe. De repente, as esposas e filhas dos compadres desnorteados peitaram seus maridos e pais: “já pra casa a sossegar o traseiro. Respeito é bom. A partir de agora, quem manda lá em casa somos nós, mulheres”. Por isso alguns compadres não dormiram. Mas as peleias acabaram!
(*) Paulo Gaiger é Artista professor do Centro de Artes – UFPel.
(*) Paulo Gaiger é Artista professor do Centro de Artes – UFPel.
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PARTE 2 MINHA MÃE E O TECO-TECO
PARTE 3
PARTE 4