Mas me caiu os butiá do bolso. Não tem cabimento, disse pra minha mãe. Ela me olhou de lado. “Te consultei, por acaso, se tem ou não tem cabimento? O que não tem cabimento é eu ficar aqui olhando as horas passarem na minha frente e nenhuminha me levar para o sossego. Enquanto isso não acontece, tenho que aproveitar o que me resta da vida!”. “Mas, mãe, tu tens quase 90 anos...”; “Te perguntei que idade eu tenho? Pensa que estou caduca e que não sei? Isso é que não tem cabimento. Agora vai lá preparar o mate”. A velha é tinhosa, pensei com meus botões. “Tinhosa é a vovozinha!”, acho que ouvi ela gritar enquanto rumava para a cozinha. Minha filha me contou que ela pediu, segredando ao ouvido, para que lhe comprasse um celular. Queria entrar na modernidade. No dia em que minha filha lhe trouxe o aparelho, pediu para baixar o aplicativo do tinder. Minha filha se riu toda, mas nem quis entrar no tema, e fez o que a avó pediu. Com paciência, ensinou a manejar as curtidas, arrastar pretendentes para a direita ou para a esquerda, responder ou não aos matches. Se tudo ocorresse bem, era trocar os números de whatsapp. “Mãe, tu não achas que é meio sem sentido? O tinder é coisa de gurizada?”; “Ué, e por que? Tu parou no tempo, é? Que vereda eu tenho, meu filho, pra trocar um afago, um beijo, um cafuné? Jogar uma conversa fora que não seja com as vizinhas, contigo, com minhas netas ou com minha filha? Nos bailes só tem velho. Eu gosto de dançar uma vanera, um chamamé... mas nessa minha idade não quero carregar velho nenhum pelo salão. Nem te conto, no mês passado, eu fui ao baile e dançava e dançava. Quando o conjunto mudou o repertório e começou a tocar essas baladas pra dançar coladinho, fui às nuvens de faceira. Agarrei o Aristides e me colei nele. Aí eu falava romanticamente: sente os batimentos do meu coração? E o Aristides em silêncio mortal. Talvez tivesse envergonhado. Eu o levando pelo salão entre tantos outros casais apaixonados. Por via das dúvidas, puxei o velho mais para mim, peito com peito, sabe, grudadinho. E agora, eu perguntei, sente o meu coração? Mudo, o velho parecia que tinha perdido a fala. Aí que me dei conta de que eu não sentia o coração dele. Meu filho, que horror, o Aristides deve ter tido um enfarto enquanto a gente dançava e foi dessa pra outra num silêncio de noite profunda. E eu carregando um defunto pelo salão. Toda o povo veio acudir, mas era tarde. Eu misturava choro e riso, ai, meu filho, todo mundo gostava do Aristides, mas partir assim, foi muito engraçado. Era um homem bem-humorado. Mas fiquei um pouco traumatizada e, daí, pensei no tinder. Pelo menos posso arrastar o morto pro lado sem esforço”. No tinder, minha velha colocou que busca homens e mulheres. “Que mal tem? Pena que eu não descobri o quanto é bom beijar uma mulher em minha juventude. Delicadeza, respeito, doçura... Na terça, recebi a Raquel, uma moça de uns 50 anos. Ela ficou surpresa comigo, com minha coragem, curiosa de mim e por isso nos matcheamos. Conversamos a tarde inteira, nos abraçamos e, ao se despedir, me deu um beijinho na boca, carinhoso, com um sorriso lindo. Agora, tem gente que escreve: busco um relacionamento sério. Sério? Como assim, se nem começou? Eu não quero nada sério. Na minha idade, me basta bons encontros com pessoas doces como a Raquel. Se eu fosse jovem, iria me lambuzar. Raquel voltará na próxima semana... Filho meu, desmancha essa cara de espanto e relaxa. A vida é bela quando a gente não dá bolas à repressão que nos encolhe. A felicidade é ser livre. Me serve um mate!”
(*) Paulo Gaiger é Artista professor do Centro de Artes – UFPel.
LEIA TAMBÉM
PARTE 1
PARTE 2 MINHA MÃE E O TECO-TECO
PARTE 3
PARTE 4
PARTE 5