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Foto do escritorAlexandre Costa

MINHA MÃE E O TECO-TECO, POR PAULO GAIGER (*)


Encilhei o Onofre, como sempre faço quando preciso dar umas voltas mais longas. Ontem, fui visitar minha mãezinha, já bem velhinha, que mora lá na Ponta do Ribeirão, rincão onde nasceu e de onde nunca saiu, mas é como se conhecesse o mundo todo. Ela anda se avizinhando dos 90. Não é coisa pouca. Fico preocupado de vê-la sozinha, mas quando proponho que venha morar comigo, ela faz que não me ouve e resmunga: esse meu filho ficou doido da cabeça depois de velho! Vero, ela ainda é capaz de me vencer na cancha reta, de dar mão no relho e botar a correr qualquer sacripanta vendedor de Bíblia, de planos de internet, de venenos para a plantação. Onofre adora passear e no passo a passo do bridão ao aperto da cilha e da barrigueira, o pangaré relincha de alegria, numa ansiedade para cruzar a porteira. E lá nos fomos, a mala de garupa com a erva, a canha, a manta de charque, que estava disposto a preparar um carreteiro, um dos pratos preferidos de mamá. O Bento veio atrás, numa felicidade que só guaipeca tem, fuçando e cheirando tudo. A Gisela deixei em casa porque toda a vez que minha mãe me visita, fica olhando minha galinha de estimação com olhos de gula e comenta, se rindo: Gisela ficaria tão bonita na panela. Por precaução a deixei, e se eu erro o ponto do carreteiro? Minha filha e minha norinha também foram pra lá. Uma festa linda em família. Foram duas horinhas de cavalgada ou pangareada, como gozam meus compadres. Cheguei no rancho, um silêncio de tremer o coração. Abri a porteira, entrei, fui até a varanda da casa e não vi movimento algum. Entrei, chamei por ela e nada. Evaporou? Fiquei encasquetado. Logo chegaram minha filha e minha nora e, depois dos abraços, nos tocamos a procurá-la. Bento farejava tudo e se distanciou de nós. Então, de repente, começou a latir desesperadamente. Saímos às carreiras para onde estava o guaipeca. Pois lá, cruzando a horta, quase no capão perto da sanga, tava a minha mãe com uma funda na mão e uma caixinha cheia de mamonas. “Mas o que tu tá fazendo, vó?”, perguntou minha filha. “Tem um teco-teco largando veneno nas lavouras, quando ele passar aqui, vou soltar as tiras da funda. Vai levar um susto e se borrar nos fundilhos!”. “Vou te ajudar a acabar com essa malvadeza”, disse. “Deixa a funda comigo e corre ao galpão e pega o melhor laço”. Com um assobio, Onofre estava com minha velha, ela montada com o laço firme na mão, esperando o demo de asas. Começamos a ouvir o ruído do teco-teco e ver ao longe aquela fumaceira de matar. Combinei com mamá: “vou dar um mamonasso e quando o aviãozinho tontear, tu laça o bicho e colocamos ele em terra pra tirar satisfação”. E assim foi. As gurias torcendo. Quando o passarinho ruim passava sobre as nossas cabeças, soltei as tiras da funda com uma precisão de arqueiro chinês. O teco-teco balançou-se todo, meio aturdido, Onofre e minha mãe saíram a todo correr, ela rodou o laço e pegou o bicho voador pelas asinhas do traseiro. Puxamos e puxamos, numa força coletiva de família, até o teco-teco se amansar em terra. O piloto saiu sem entender muita coisa, como aquele que se depara com a mula-sem-cabeça, meio bufando por bufar. Mas quando botou os seus olhos nos olhos feitos duas adagas da minha mãe, virou um cordeirinho. “Que é isso de soltar veneno na lavoura? Sabe o trabalho que dá? Sabe quantas famílias se alimentam desse trabalho árduo de todos os dias? Sabe que a água que bebemos do ribeirão fica podre? Sabe que o que a gente planta é o que chega na mesa da tua casa, e não a monocultura do agronegócio do teu patrão? Seu sem-vergonha.” O piloto se tremia todo e corria lágrima dos olhos. “Tá, te acalma e vem comer um carreteiro com a gente. Mas não faz mais isso”. Estávamos subindo para a casa quando ele perguntou: “Onde fica a casinha?”


(*) Paulo Gaiger é Artista professor do Centro de Artes – UFPel.

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