top of page

MINHA MÃE E O TATU-MULITA, POR PAULO GAIGER (*)

Foto do escritor: Alexandre CostaAlexandre Costa

Ando preocupado com a minha velha. No sábado passado, na reunião do CTG, soltou os freios do pensamento e da língua e desancou os galinhos da colônia, que é assim como ela chama os machinhos guardiões da tradição. Aos quase noventa anos, franzina e de cabelos brancos e ralos, parece que perdeu a vergonha, a timidez e ganhou a liberdade de ventania. Santa Bárbara ou Iansã? Acho que tá mais pra Iansã, pelo pouco que sei. Ela mesma diz: “Ah, se eu pensasse assim como penso agora lá na lonjura dos meus vinte e poucos anos, esse mundão seria outro, mais belo, generoso e feminino, uma força como a de uma Iansã. Como a gente é taipa quando jovencita, fica se achando, aceita tudo como se não houvesse outros modos de ser e fazer. Quando me casei com teu pai, acreditava que estava cumprindo meu ´papel singular de mulher para ser feliz. Qual nada! A mesma trilha, o mesmo angu, uma repetição besta, tudo igual só que parecendo ser diferente. Que trampa! Sabe daquela mensagem: Se beber, não dirija. Li uma bem humorada que diz: ”Se te apaixonar, não se case!”, e se riu de sacudir. Ela fez uma revolução no CTG naquele fim de semana, é só do que se fala por estas bandas. Acabou com a nomenclatura de patrão, capataz, posteiros, peões e prendas. Furiosa, defendeu que o Centro de Tradições, embora tivesse esse nome, não poderia reproduzir as políticas fundiárias injustas, o papel subalterno das mulheres, o racismo e o ranço com gays e lésbicas. E ainda perguntou para a assembleia assombrada: “Quantos estancieiros pretos vocês conhecem? Ou alguma mulher que não tenha sido assediada, golpeada, ofendida, desprezada simplesmente por ser mulher? Aqui não tem mais patrão. Acabou!”. E mudaram toda a organização do CTG. Tradições de deslealdade, de injustiça, de privilégio, de desprezo, de racismo, de miss prenda não entram mais aqui, as mulheres escreveram na porta de entrada. Minha velha lembrava da reunião tumultuada, mas com final bom, e dava gargalhadas de felicidade. “Sabe, filho, quando essa gente fala ou canta nas tertúlias que nos tempos dos avós é que era bom, eu sei muito bem o quanto era de ruim! Esquecem que só era bom para quem não fosse pobre, preto e mulher. Falam de valores da família e nem sei do que mais. Ora, que famílias boas eram aquelas em que as mulheres valiam menos que uma terneira? Não podiam estudar, tinham que obedecer sem se queixar e o sexo antes do casamento, para a mulher, era uma condenação. Mulher que se revoltava era considerada histérica. Quando teu pai morreu fiquei tão faceira que teve gente que achou que eu tinha ficado louca da cabeça ou com o diabo no corpo. E ainda existia a filha de criação, uma artimanha para ter mão escrava em troca de boia e um estrado para dormir depois de um dia de lida. Era uma desgraceira”. Ela fitou o Bento que se coçava e disse: “Bento, tu é bem querido no novo CTG, mas o outro, o Bento Gonçalves, esse nunca mais. O sem-vergonha, revolucionário de uma figa, estancieiro safado, nem retrato vai ter dentro da sede. O mito desabou com a mentira que o engordava!”. O povoado da redondeza estava em polvorosa, afinal, o que era isso das mulheres tomarem o poder assim no mais e, como se diz, democraticamente e com razão? Minha mãe olhava o horizonte expressando uma felicidade nunca vista. “Agora o mundo tem jeito”, suspirou. E perguntei, finalmente: “Mas tu querias me falar do tatu-mulita, não é?”; “Sim, meu filho, O bichinho tá em extinção, coisa de macho, do agro, de caçador. Mas a partir de agora, até o tatu-mulita vai festejar a vida. Do seu jeito”.


(*) Paulo Gaiger é Artista professor do Centro de Artes – UFPel.


LEIA TAMBÉM


PARTE 1

PARTE 3

bottom of page