MINHA MÃE E O FUNERAL, POR PAULO GAIGER (*)
- Alexandre Costa
- 18 de ago. de 2022
- 3 min de leitura

Ainda naquele fim de semana, bem início da primavera quando os campos começam a florir, a brisa é como uma carícia no rosto, os passarinhos formam sinfônicas aqui e ali, as abelhas ficam alvoroçadas zunindo e prenunciando uma fartura de mel, o Aristides foi levado ao campo santo. Gentes de todos os rincões vieram fazer as despedidas daquele parceiro de truco, de cavalgada, de bom humor e dono de um pé no salão de causar admiração a profissionais da dança. Foi assim que morreu, dançando. Nos braços de minha mãe, como ela conta e o povo testemunha. O que me chamou a atenção foi que o padre, na cerimônia, aconselhado por ela, não se referiu aos hipotéticos pecados do Aristides, coisa que ele nunca cometeu em vida, muito menos cometeria debaixo do silêncio da laje e das flores. Minha velha pediu a palavra e agradeceu os belos momentos que vivenciara com o agora defunto, seja no salão, na varanda compartilhando um mate, nas caminhadas à margem do rio, nos protestos contra os agrotóxicos e o desmatamento. Olhou para o padre e perguntou: “Isso é pecado? Aristides era um homem bom e alegre, é isso que vou guardar, além do fato de ele ter morrido dançando comigo. Era um gozador, esse homem. Eu amava o Aristides por sua bondade, disposição, camaradagem. Padre, ele ficava furioso com qualquer tipo de injustiça, sabia? E vou lhe dizer uma coisa que pouca gente daqui tem conhecimento: meses depois que ele enviuvou, o Joca e ele se amasiaram. Com medo da falação, iam namorar lá em casa. Os dois ficaram muito tristes quando o Joca foi transferido lá pra o Goiás. Esse amor não tem nada a ver com pecado, né, padre? Pecado, meu querido paramentoso, é criança sem escola, é o racismo, é mulher sendo estuprada, é gay sendo massacrado, é gente doida pedindo a volta dos milicos, é maluco querendo enfiar goela abaixo uma religião... Padre, isso é pecado!”. A cerimônia acabou em cantoria, o povo começou a dançar pelo campo santo, um carinho para o recém enterrado, porque o pior para quem morre não é a morte, é a solidão. O padre ficou espantado e meio sem graça, até que minha velha o tirou para dançar. Não é que o paramentoso tinha um bom pé no salão, nesse caso, no campo santo. Se divertiu como nunca, mas tomava o cuidado de fazer o santiamém a cada minuto como quem perde perdão e se protege da condenação ao inferno. Quando o povo se cansou de rodar, cada qual regressou para a sua casa a pé ou a cavalo. Fomos almoçar no rancho de minha mãe, ela, o padre e eu. Fiquei matutando, ela vai aprontar: não acredita em deus, nem nessas baboseiras de céu e inferno. Nas poucas vezes em que ficou acamada, sempre apelou para o seu conhecimento de ervas ou buscou atendimento médico. Orações, só íntimas. “Se eu fosse obrigada a rezar, iria rezar para o Curupira, ao menos esse defende a natureza e é divertido”. Durante o almoço, ligou a matraca. “Aristides e Joca sempre se gostaram. Mas o Aristides era casado com a Elenice, que também tinha uma queda pelo Joca. Os três poderiam ter vivido uma história bem linda, né, se não fossem queimados pela igreja. Por que confinar os sentimentos do amor? Isso pode, isso não. Por que não namorar, transar e conviver com duas ou mais pessoas, com afeto, consenso e respeito? Eu mesma fico pensando sobre o que eu perdi em minha juventude... nem me passava que eu poderia amar uma mulher e mais do que uma pessoa ao mesmo tempo. Acho que esse negócio de monogamia pode ser uma peste, um funeral diário do coração e da felicidade. Não acha, Padre?” Ele fez o santiamém, ruborizado.
(*) Paulo Gaiger é Artista professor do Centro de Artes – UFPel.
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PARTE 2 MINHA MÃE E O TECO-TECO
PARTE 3
PARTE 4
PARTE 5
PARTE 6