
Nos domingos, como bom filho, costumo almoçar com minha mãe, viúva há muitos anos e que vive sozinha por decisão de sua própria mão e cachola. Desde minha juventude, não poucas vezes, me admoestava: “Não coloquei filho no mundo para que depois tivesse que viver colado a mim como quem tem uma dívida ou invente uma desculpa para disfarçar uma dependência emocional acriançada. Por favor! Asas, meu filho, asas. Voa, vai fazer a tua vida! Aprenda a tropeçar, a cair, a ralar os joelhos”. Ouvia aquilo e matutava sobre se ela tinha um gênio difícil ou era eu, varão, que esperava uma fala mais doce e zelosa. Se ela era cabeça dura ou era eu, intimamente, que achava que tinha uma dívida pela criação, pelos afetos e apoios, pelo seu empenho para me fazer gente adulta. Homens são inseguros. “Meu filho, amadurecer significa se flexibilizar, olhar o mundo de peito aberto, abrir e admirar horizontes, respeitar quem vai por outras veredas, ter empatia... A árvore de tronco duro, se rompe com a ventania. Tá vendo aquele moirão? Fixo, imóvel como uma tradição... serve apenas para as amarras dos arames que delimitam fronteiras, impedem a passagem do gado e detém o viajante. Metaforicamente, se é que me entendes, algumas tradições, heranças, costumes, religião e valores são como alambrados, moirões e arames farpados que impedem as novas ideias, a dúvida, a pergunta, o amor e a liberdade. Seja vento, seja brisa, seja luar, seja raio de sol, seja chuva, seja um pássaro e se fores viajante, pule ou rompa... é isso que um filho tem que ser”. Ela estava com a corda toda. Mateávamos na varanda, o Bento e o Garibaldi esparramados no sol, só esperando a hora da boia. Uma coisa me intrigava fazia algumas semanas. “Mãe, voltaste a colocar o anel de casamento para lembrar do pai?”. Ela olhou para a sua própria mão direita e para o dedo anelar e deu uma risada. “Sim, filho. Mas não é para lembrar, é para não esquecer”. Fiquei encasquetado. “Tá com essa cara de quem não está entendendo nada?”, e deu outra risada. “Tu era muito pequeno, mas depois que teu pai se foi, tirei a aliança como um grito de alforria. Teu pai, só me dei conta depois de anos de casamento, era um bruto, curto das ideias, fincado às tradições de família onde a mulher não vale muita coisa. Mulher sem voz e sem decisão é tudo que um homem de alambrados deseja. Só consegui estudar e frequentar a biblioteca da escola rural porque banquei firme meu desejo de autonomia. Eu queria ser mulher e, não, esposa. Por causa disso, levei muitas surras, ele gritava e me acusava de haver mudado. E mudei. Ainda bem. Lamento ter perdido boa parte da minha vida ao lado de um homem ruim. Coloquei o anel novamente, para não esquecer e para mostrar às moças da colônia, todas educadas a buscar um marido, para que não se casem. Que primeiro construam a liberdade e sua autonomia para serem ouvidas, respeitadas e, sobretudo, que sejam mulheres”. Fiquei com a boca sem dizer palavra. Muitos anos atrás, de minha irmã mais velha escutei que meu pai foi um homem mau, religioso e ignorante. Surrava minha irmã como se ela fosse um demônio, especialmente quando engravidou aos 16 anos. Bateu porque condenava o sexo. Minha mãe intercedeu, mas acabou apanhando também. Porém, ela conseguiu impedir o casamento de minha irmã que, segundo papai, resgataria a honra da família. Eu tinha 4 anos, chorava e me escondia apavorado. Minha irmã fugiu de casa e só voltou para casa quando o pai morreu em uma queda do cavalo, uns três anos depois. Nossa mãe segurou as pontas com firmeza. Era outra mulher. Foi ao enterro, e como ela mesmo disse, para certificar de que ele estava bem enterrado. “Quase ergui um monumento ao cavalo”, se ri. “Entendeu, meu filho. É para não esquecer!”
(*) Paulo Gaiger é Artista professor do Centro de Artes – UFPel.
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