Voltei no meio da tarde lá do rancho de minha mãe, depois de um rico de um carreteiro e de uma boa conversa recordando acontecidos e defuntos. Vim puxando o Onofre, meu pangaré, tapado de sacolas cheias de potes de ambrosia. Minha velha, ao longo dos anos, se especializou em ambrosia, a mais saborosa da colônia. Leite, ovos, canela, cravo, suquinho de limão, açúcar, tudo parece fácil, mas é a sabedoria da mão que mede a qualidade dos produtos e as porções, que mexe no tacho, que vê o ponto exato. Só em contar fico com água na boca. Meus compadres sabem que passei o dia com minha mãezinha e, já sei, irão cobrar: e a ambrosia? Trouxe? Dom Rubira, o seleiro, não dorme enquanto eu não chegar com seu pote. E fica matutando inquieto. Dom Rosinha me espera na porteira numa ansiedade de guri que vai ganhar sapato novo. Os compadres do bolicho, Dona Marina e Dom Mauro, encomendaram quatro potes. Bibiana e Ramiro, os rebentos, vão passar a semana inteira se lambuzando. Dom Mauro está de dieta, mas contam que quando a casa está dormindo, vai de assalto à ambrosia. Ouviu dizer que o taura que come às escondidas não engorda. Do outro lado do riacho, Dona Maria e Dom Leandro não falam de outra coisa. Até música Dom Leandro fez. Gonçalito, o mandinho, a cada uma hora vai até o meu rancho e pergunta pro Sebastião: tio, a ambrosia chegou? Ainda bem que a Dona Fabiana está de viagem, lá pros lados da Maputo. Assim, vai ter ambrosia para todos. Mas mal cheguei no meu rancho, Sebastião dando uma mão para descarregar e distribuir os potes, me aparece o Garibaldi, o cachorro da minha mãe. A velha não tem telefone e, quando algo não vai bem, manda o Garibaldi me avisar. Desta vez, decidi ir de auto, porque fiquei preocupado. O que foi, mãe? Perguntei assim que cheguei. Então, ela disse que outro teco-teco tava largando veneno na plantação, matando as abelhas e arruinando a vinha da Dona Sílvia. Vou ter de pegar o laço de novo, cogitei. “Vamos ao aeroclube pegar um avião”; “Como assim, nem sei pilotar?”; “E quem disse que é tu quem vai pilotar?”. Chegamos no aeroclube e a velha entregou dois potes de ambrosia para o vigilante que, de tão feliz, liberou um dos teco-tecos. Entramos no aviãozinho e minha mãe ordenou como se eu ainda fosse um piá: “faz vrrrrrrrrrr, vrrrrrrrrrrrrr...”; “Como assim? Vrrrrrr...”; “Como queres que essa geringonça voe?”. Nós dois começamos a fazer vrrrrrrr... e não é que o passarinho despegou e começamos a voar. “Não para de fazer vrrrrrrrrrrrr... porque se não essa coisa cai”, sentenciou. Logo mais avistamos o teco-teco do demo, largando veneno. Como uma pilota experiente, ela encostou asa com asa no aviãozinho do inferno. Fez um sinal para o outro piloto reduzir a velocidade. E sem mais, a velha abriu a portinha do nosso avião, virou-se para mim: “segue fazendo vrrrrrrr...” e foi pela asa para a asa do demo e bateu na janelinha do outro piloto. Vi que conversaram uns bons minutos. Depois ela regressou, entrou no aviãozinho e disse: “Acabou o envenenamento. Podemos voltar. Ele está vindo atrás de nós”. Vrrrrrrr... e descemos na pista seguidos do teco-teco do demo. “Como tu conseguiu isso?”, perguntei. “Ambrosia, meu filho. É o Chiquinho, filho do Vanderlei. Guri bom, mas tá fazendo esse trabalhinho besta que prejudica os outros. Convenci ele a buscar um trabalho que faça bem para as pessoas e para a natureza. Nada que não se possa fazer com potes de ambrosia. Uma vez por semana ela vai passar lá no meu rancho”. Os compadres me perguntam: como sucedeu o fim do envenenamento? “Não sei, só sei que foi assim: a ambrosia da minha mãe.”
Obrigado, Maurício de Souza e Ariano Suassuna
(*) Paulo Gaiger é Artista professor do Centro de Artes – UFPel.