Angélica Freitas é uma poeta de encantar, poderes da palavra, liberdade de livre escrever, onda, ruas, veredas, pele, supermercados, eu, você, imagens. Queria muito ler Um útero é do tamanho de um punho, recomendado pelas minhas alunas e colegas de trabalho. Acabei me inaugurando na lida dos poemas da poeta nas Canções de Atormentar. E sofri o encantamento. Coisa bem boa esse sofrer de palavras que nos remetem para todos os lugares e deslugares. Angélica escreve solta, faceira, inquieta, monta e desmonta as palavras, as coloca em desordem sem amarras, empregando ritmos que dançam, que riem, que metem a faca na jugular: “a poetiza chega à alfândega e o funcionário da polícia federal logo desconfia / pede-lhe que abra as palavras / isso pode demorar, pensa a poetiza / as palavras tão carregadas de significado até o máximo grau possível / o funcionário pergunta-lhe se ela sabe o quanto significado pode trazer nas palavras / a poetiza diz que sim / o funcionário da polícia federal balança a cabeça e diz que infelizmente vai ter de registrar a infração”. Os olhos acompanham a viagem de cada poema, de cada palavra, e são levados ao inusitado, ao frescor, à indagação que nos peita: “Quando você viu na tv aquelas pessoas em fila na chuva, à noite na estrada, na fronteira de uma país que não as desejava / e quando vocês viu as bombas caírem sobre cidadãos distantes, com aquelas casas e ruas tão sujas e tão diferentes / e quando você viu a polícia na praça do país estrangeiro partir para cima dos manifestantes com bombas de gás lacrimogêneo / não pensou duas vezes, nem trocou o canal e foi pegar comida na geladeira”. Prendam as palavras, morte às palavras e aos livros, cancelem a poeta, vocifera o “leitor de código de barras”, o que mais lê, muito semelhante àquele beatorro vestindo terno que só lê a Bíblia. E tanto rebusna pra tirar o demônio das mulheres e das poetas. Não sabe e nem quer saber. “eu sou a garota fugaz da minha rua em flor / o garoto que rouba flores das casas / eu sou, sobretudo, eu sou eu mesma”. Deslizo a boca pelas páginas, que louca para cantar os poemas, ávida por jogar, brincar, pensar, se surpreender “devamos perecer ridéculos aos paixes / parque nõo tamos escemas / parque nõo tamos escemas / tamos reupa de naoprina, tibas de exagênea / mas nõo tamos escemas / mas nõo tamos escemas / par eso tolvaz nos vangamos / par esa felta fetal qua safremos / a matemos getos, pesseros, paixes / a comamos paixes, pésseros, oté getos fretos, assedos, em paletos”. Spoiler? Canções de Atormentar é o último poema do livro, canção da sereia?, “canção de arrepiar os pelos”. Pois não, “é inventado ou verdadeiro que a sereia cantou pro marinheiro / ele pôs cera no ouvido ou se atou ao mastro feito um bom marido / domador dos mares e da libido...”. Ainda estou embebido, à deriva no mar das palavras e das ideias. E Vitor Ramil, esse baita escritor, músico e compositor, do mundo e de Satolep, como também é Angélica Freitas, do tangível e intangível, do perfume e do horizonte, provavelmente em abril, logo ali, estará lançando o álbum/vídeo Avenida Angélica, gravado/filmado no canteiro das obras de restauro do Theatro Sete de Abril. Os livros de poemas Rilke Shake e Um útero é do tamanho de um punho serão canções para a gente se encantar. Angélica deve guardar segredos que vai revelando a conta-gotas, “a poetiza nunca foi à Itália / mas tem souvenir da torre de pisa / é aquele preciso tijolo / cuja ausência a deixa inclinada”.
(*) Paulo Gaiger é artista professor do Centro de Artes – UFPel.
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